A opinião de ...

Gavetas da Memória

(Continuação edição anterior)
Nem queiram saber o que se passou a seguir
Num abrir e fechar de olhos, apareceu mais de uma arroba de batatas, não me lembro quantos garrafões de tinto, comprou-se e demolhou-se o bacalhau e, antes que fechasse, ala para o lagar, antes que se fizesse tarde. Seguramente, não teria passado mais de uma meia hora e, carregados com tudo o que era indispensável para uma boa lagarada, lá fomos bater à porta do lagar onde o Sr. Roque.
Depois de comentar que não tínhamos escolhido o melhor dia para fazer a tainada, imediatamente nos pôs à vontade. De braços abertos e com aquele seu sorriso incomparável, mandando-nos entrar com a garantia de que tudo acabaria por se arranjar.
À frente veremos o porquê deste reparo. Seriam aí umas sete e meia oito horas da noite, quando o enorme alguidar de esmalte, qual rei da noite, cheio a deitar para fora com as incomparáveis batatas a murro assadas no borralho da fornalha, o bacalhau assado e esguiçado e tudo generosamente regado com o azeite acabadinho de espremer, foi colocado num trono feito com grades vazias, bem em frente ao calor da fornalha, aconchegámo-nos todos à sua volta o grande ataque àquele autêntico manjar de reis, digno dos deuses do Olimpo, só possível de avaliar por quem teve o privilégio de o saborear.
Era realmente impressionante constatar como é que da simples conjugação de ingredientes tão simples, como as batatas e o bacalhau, este apenas demolhado à pressa na água gelada do tanque, tudo assado no borralho da fornalha e temperados apenas, com alho e o azeite acabado de fazer, resultava aquela maravilha de petisco, duma riqueza de paladar inigualável, como acima se referiu, um autentico manjar dos deuses, que era de comer, comer, comer e chorar por mais, tudo bem regado com o maravilhoso palheto da terra, bebido directamente dos garrafões que, num corrupio constante de boca em boca, só tinham descanso quando, parafraseando o saudoso Vasco Santana, “aquele já não tinha mais”!
Estávamos quase a terminar o nosso lauto repasto quando, sem que nada o fizesse prever, entrou porta a dentro do lagar, nem mais nem menos, que o dono do azeite, o Sr. Dr. Liberal, à época, um dos maiores colheiteiros de azeite, (e de tantas outras coisas) que, depois dum simples boa noite, dado quase por favor, perguntou ao Sr. Roque se o seu azeite estava sair bem e a azeitona estava a render muito.
Aí então, descobrimos a razão de nos ter sido dito à entrada que tínhamos escolhido mal a noite, conscientes de que a nossa lagarada tinha terminado naquele momento. Um pouco desiludidos pela maneira inesperada como as coisas tinham evoluído, mas com o coração cheio e a alma reconfortada pelo convívio, pela amizade e pela partilha, com um sincero muito obrigado despedimo-nos do Sr. Roque que, como era seu timbre, gentilmente nos acompanhou à porta, convidando-nos a voltar sempre que quiséssemos. Mas, ao contrário do que nós pensámos, a noite não terminou ali. Soubemos depois que O Senhor Doutor, rendido ao cheirinho da nossa comezaina, ficou escravo do seu apetite e já não quis saber se a azeitona rendia mais que a dos outros, rendia muito ou rendia pouco. Mal nós saímos, apressou-se a perguntar se podia provar do que tinha ficado, bastando-lhe para isso pegar num garfo para comer do alguidar e num copo para beber umas pingas, “ferramenta” de que se serviu, antes mesmo de obter qualquer resposta. Terminado este suculento e imprevisto jantar, agora de semblante bem mais aberto, reflectindo no rosto a felicidade gerada no estomago subitamente tão bem aconchegado, ao partir para Vimioso, fez questão de dizer que também gostaria de ser convidado sempre que no lagar houvesse lagaradas assim e, curiosamente, ou talvez não, o que nunca ninguém soube foi se, à semelhança do que fizera O Sr. Professor Albino, também ele se teria oferecido para oferecer o azeite, pagar o vinho, ou comprar o bacalhau!
Foi por estas ou por outras que, vezes sem conta, ouvi da boca de meu saudoso avô, e ele lá saberia bem porque o dizia, que “não é dando que se fazem fortunas”!

Edição
3715

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