A opinião de ...

«Que tens tu que não tenhas recebido?»

«Que tens tu que não tenhas recebido?» (1 Cor 4, 7) é uma advertência que São Paulo faz à comunidade de Corinto, lembrando que a vida é dom. Não um dom qualquer, mas ‘dom’, é dom de Deus. Tudo é dado, tudo nos é ofertado pela primorosa orgânica da vida e da existência natural. Até o tempo é dado para sermos mais nós e menos eu. Esta perspectiva doativa da existência projeta-nos para o horizonte da alteridade, ou seja, olhar o outro, o irmão, como verdadeiro dom. Aquele dom que não pode e nem deve ser manipulado, coisificado, ultrajado, desrespeitado na sua liberdade, na sua autonomia e na sua dignidade. O outro não pode ser considerado e tratado como propriedade pessoal, como se tratasse de uma coisa nossa, sem vida, sem autonomia, sem livre-arbítrio ou sem dignidade.
O Papa Francisco, na sua Mensagem para o XXVII Dia Mundial do Doente, desafia-nos, contra esta cultura dominante do descarte e da indiferença, a colocar o dom como «paradigma capaz de desafiar o individualismo e a fragmentação dos nossos dias». Por isso, o diálogo surge como pressuposto deste dom. É pelo diálogo que rompemos os «esquemas consolidados de exercício do poder na sociedade» (Papa Francisco). O diálogo supõe o reconhecimento do outro como irmão pleno de autonomia e de dignidade.
Nesta dinâmica relacional somos convidados à doação: não de coisas, mas de nós mesmos. E quando nos damos verdadeiramente, então surge o amor nas suas mais variadas formas e expressões. É gerado, deste modo, um vínculo entre aqueles que se dão, criando um ambiente de salutar relação e de mútua elevação espiritual. A palavra é, aqui, a chave que abre os corações e que gera a relação. Naturalmente, a Palavra de Deus – divina e definitivamente revelada em Jesus Cristo – amplia esta relação para a sua ulterior dimensão, isto é, projeta-nos para aquele encontro ansiosamente esperado (e aguardado) pela nossa alma, onde nós nos encontramos, simultaneamente, connosco mesmos e com Aquele que é o Dom por excelência, que é a ternura que inebria e a misericórdia que acalenta a vida. Partilho convosco um elucidativo e inquietante conto judaico: «Vira e revira a Palavra de Deus, porque nela está tudo; contempla-a, envelhece e consome-te nela; não te afastes dela, porque não há coisa melhor do que ela».
É muito curioso que, nesta concepção existencial da vida como dom de Deus, surja a gratuidade como consequência natural e instantânea desta relação doativa entre as pessoas. Na verdade, só na autêntica gratuidade pode nascer o verdadeiro e edificante amor. Saibamos – a partir do eloquente testemunho de Santa Madre Teresa de Calcutá – aplicar o desafio lançado pelo Papa Francisco: «a misericórdia foi para ela [Santa Madre Teresa] o “sal”, que dava sabor a todas as suas obras, e a “luz” que iluminava a escuridão de todos aqueles que nem sequer tinham mais lágrimas para chorar pela sua pobreza e sofrimento. […] A Santa Madre Teresa ajuda-nos a compreender que o único critério de acção deve ser o amor gratuito para com todos, sem distinção de língua, cultura, etnia ou religião. O seu exemplo continua a guiar-nos na abertura de horizontes de alegria e esperança para a humanidade necessitada de compreensão e ternura, especialmente para as pessoas que sofrem».

Edição
3717

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