A opinião de ...

José Mário Leite

18 postais perdidos (podia ser só um!)
 
Numa crónica anterior (de má memória pois, infelizmente em vez da versão final foi enviada para publicação o rascunho) falei do filme de culto de Ingmar Bergman, O Ovo da Serpente, a propósito da preocupante situação mundial com o ressurgimento de movimentos e ideologias extremistas num caldo de culturas e situações que, de alguma forma, fazem lembrar a primeira metade do século passado. Por coincidência ( ou talvez não) chegou às salas o filme de Vincent Perez com Emma Thompson, Daniel Brühl e Brendan Gleeson na Alemanha já em plena Guerra Mundial. Enquanto o realizador sueco nos mostra o advento do nascimento do réptil, Vincent retrata-nos o despontar do desencanto e da deceção de muitos germânicos com o movimento nazi que haviam, recentemente, apoiado maioritariamente.
 
A ocupação da república francesa prestigia Hitler conferindo-lhe grande reputação e consolidando‑lhe o poder absoluto e discricionário. Na batalha gaulesa morre Hans filho de Otto e Anna, dois cidadãos comuns empenhados no “esforço” nacional para consolidação do regime: ela pertencia à Liga das Mulheres Nazis e ele era capataz num empresa estatal integrada na industria militar do Terceiro Reich. Desolados rebelam-se contra o regime e tomam consciência do logro coletivo que assola a nação. Decidem afastar-se do regime: Anna faz-se suspender da Liga e Otto distancia-se do fervor industrial. Entretanto resolvem de forma cúmplice iniciar uma campanha de desmascaramento das mentiras oficiais. Ele começa a redigir textos em postais que depois vão distribuindo em locais públicos de forma dissimulada. Os postais apelam à rebelião, acusam Hitler como um sanguinário frio e obstinado, pedem a sua morte e denunciam a morte dos jovens alemães.
As centenas de postais, colocados em vãos de portas e escadarias de prédios habitacionais e de escritórios, acabam por, invariavelmente, chegar à esquadra da polícia berlinense, enfurecendo os seus agentes, bem como a Gestapo. A poderosa máquina de guerra e repressão nazi, está a arrasar os países centro-europeus que invade e domina mas não consegue evitar o ato de rebeldia, na capital, ali mesmo, nas suas barbas. 
Um acidente menor e um descuido fatal comprometem o autor que acaba sendo preso. Confrontado com as evidências confessa os seus atos e as suas motivações. A possível glória do comissário policial baqueia quando confrontado com a realidade. Quando Escherich tentava demonstrar a Otto a inutilidade do seu ato porque todas as mensagens tinham sido encaminhadas para si, constata que, apesar de serem recolhidas em espaço público, altamente vigiado e em que o medo dominava a sociedade germânica, em que cada um podia ser denunciado por quem quer que reparasse num ato discordante... afinal, dezoito dessas mensagens, não lhe foram entregues. 
Essa é a força da liberdade. Dezoito cartões cumpriram totalmente o seu desígnio. 
E podia ter sido apenas um!
A mentira para vingar tem de ser aceite por todos. A verdade, para germinar e questionar a falsa realidade, basta que seja enunciada uma vez e que, pelo menos uma vez, seja ouvida. 
De alguma maneira cumpre-se o postulado de Italo Calvino: “Não é a voz que dirige a história, mas sim o ouvido!”

 

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3608

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