A opinião de ...

Reflexões em tempos de excessos

1. Li “A espuma dos dias”, de Boris Vian (1920-1959), há cerca de 50 anos, num quartito improvisado do aquartelamento sito na aldeia (tabanca) de Olossato – vejam como é sonoro o nome deste local, onde corre o rio do mesmo nome! Sim, também se lia em plena guerra colonial. Peguei no livro de novo, agora que tantos excessos vão por este mundo fora. Boris Vian falava da amizade, do amor, do trabalho, da morte e da vida. Também de exageros tantos que experimentavam ele e a sociedade dos anos 20-30.
2. Reli a sinopse da obra “O Processo de Damião de Góis” (1502-1574, historiador, epistológrafo, diplomata, viajante e grande vítima da Inquisição, o grande humanista português do Renascimento), obra da autoria de Raul Rego (reimpressão de 2007, Assírio & Alvim). Transcrevo parte da apresentação de António Reis: «…não é sem um grito de indignação que vamos tomando conhecimento das acusações que lhe serviram de base – desde comer “carne em dia de defeso” e desprezar as imagens de santos a ter falado com Lutero e ser amigo de Erasmo, desde a sua oposição à confissão até à sua desvalorização das indulgências papais, assim pondo em causa o poder do Papa e a existência do Purgatório…Acusações que deixam também evidente o quanto de pernicioso pode existir no fenómeno de acasalamento entre um poder religioso ou ideológico, qualquer que ele seja, e o poder político …»
3. O Parlamento cabo-verdiano rejeitou a proposta da Fundação Amílcar Cabral para celebrar o centenário do nascimento do pai das nacionalidades guineense e cabo-verdiana. A este propósito, Paula Torres de Carvalho, jornalista luso-caboverdiana, escreveu no Público, no dia 4 Novembro de 2023: «A chocante indiferença de Cabo Verde para com Amílcar Cabral, uma figura de incontornável importância histórica para a Guiné e Cabo Verde, mas também para toda a África pelos valores que transmitiu, sendo hoje inquestionável a sua projeção internacional». Ao menos, o Presidente da República, José Maria das Neves, veio criticar a rejeição: «Todos os países devem cuidar dos seus símbolos, devem cuidar dos seus heróis...».
4. Li no Expresso Curto, de 6.11.23 (jornalista Raquel Moleiro): «De acordo com a ONU, há 1,5 milhões de pessoas deslocadas internamente na Faixa de Gaza».
O que existe de comum nestes factos históricos, datados de tempos tão distintos sobre o comportamento do Homem (já aqui escrevi que devo escrever homem…)? Quanto a mim, muito: parece que fomos feitos à imagem de satanás (belzebu lhe chamava mestre Gil), que, acreditem ou não nas divindades, representa o horror, a maldade, a traição, a morte o assassínio. Os exageros observados por Boris Vian, a morte lenta infligida a Góis, a traição a Cabral, o vilipêndio de milhares de pessoas fugindo da guerra – tantas situações de menosprezo pela vida que a História relata! São fenómenos que os antropólogos, sociólogos e políticos poderão comentar, e que caracterizam a condição humana. E nós interrogamo-nos: como estamos a olhar para o Outro? Onde está o futuro da Humanidade?

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3960

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