A opinião de ...

MEMÓRIAS DA TABERNA

Há, entre outras, uma forma de, neste inverno frio e citadino, me sentar à lareira e, mesmo com o fogo apagado, as vacas por acomodar e sem os ralhos da vizinha por causa das pitas que debicam o renovo, sentir um calor doce e reconfortante, vindo das cinzas da lareira, ou do canto silencioso de “um rouxinol intemporal, pendurado nos ramos secos dos freixos”... Neste inverno que começou com vento gelado trazendo, do nordeste branco, o frio das manhãs de neve e gelo, fui, diariamente, lendo, um capítulo por dia (não mais, para que o pudesse saborear adequadamente) do Pão Centeio, o último livro da trilogia brigantina da autoria do meu amigo de décadas, Fernando Calado.
Em O Milagre de Bragança o escritor de Milhão desvenda-nos a Coimbra em Miniatura do início do século passado, num hino aos homens e mulheres que trouxeram o velho burgo regional e tradicional para a modernidade e o abriram ao progresso do final do milénio. Quando as mães sairam à rua retrata-nos a urbe atual, que conhecemos no virar do século, com as contradições de um período de alguma prosperidade e abundância mas que já antecipava o ciclo de crises material e de valores que se aproximavam e que já marcavam o tempo, tal como se observa no ovo da serpente, o prenúncio do nascimento do réptil. Mas é, na minha opinião, com Pão Centeio que o poeta e romancista bragançano nos envolve com o calor das recordações tradicionais e caracteristicas do povo nodestino. Tal como quando se remexe nas cinzas se sente a quentura e conforto das brasas que lhe deram origem, igualmente a leitura deste romance, nos transporta aos tempos pretéritos de um modo de vida em vias de extinção. Quiçá, para um novo renascimento, tal como a fénix que o autor convoca várias vezes, pela voz dos seus personagens. Arriscando alguma injustiça para com o escritor, atrevo-me a reclamar que os dois primeiros livros foram “apenas” a introdução e o enquadramento urbano e temporal daquele que é a verdadeira marca da vida nordestina recente. Com algumas e justificadas exceções, todos os dias, pela tardinha, senti-me, de novo, na minha aldeia natal, sentei-me, umas vezes na lareira, outras no terreiro da fonte e, na maioria das vezes, no banco de madeira da taberna abrindo as portas da minha memória e assistindo a um desfilar de velhos e reconhecidos quadros rurais. Bebi fraternos copos de vinho do pipo, na taberna, partilhei saladas de bacalhau com tomate e cebola generosamente regada com azeite da almotolia, no soto e, sobretudo, persegui, à sombra das amoreiras do terreiro, os “ladrões do tempo” do futuro que nos espera.
Os vários painéis que desfilam ao longo das mais de duas centenas de páginas trazem-me um passado recente em que o soto foi o centro da vida da aldeia de onde venho e nisso me irmano com o autor pois também os meus pais tinham um estabelecimento onde tudo se vendia, desde a agulha ao açúcar amarelo a granel, desde as meadas de tripas, às sementes e ao corte de flanela e cotim. E, sobretudo, onde convergiam todos os forasteiros, fossem latoeiros, pantomineiros, comerciantes ou simples viajantes em trânsito e visitantes esporádicos. E onde aportavam os loucos, os mendigos e os excêntricos sonhadores!
Partilhando o anseio de ver o nordeste rural renascer, partilho igualmente as memórias da taberna onde, diariamente se registava a história quotidiana das várias fainas e tarefas agrícolas e sociais.
Sem dúvida,  o último livro de Fernando Calado é a chave dourada a encerrar a trilogia, em boa hora acordada com a edilidade brigantina. É o testemunho e o testamento das mulheres e homens que “cozem o pão... lavram a terra... bebem vinho... assistem ao envelhecer e à derrocada da aldeia que paulatinamente há-de renascer.”

Edição
3662

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