A opinião de ...

Um olival na praia

A canícula empurra-me para a praia de Santo Amaro de Oeiras para me poupar às enormes filas que nesta altura do ano sempre se formam na marginal ou em qualquer outro acesso aos areiais ribeirinhos do Tejo ou do mar. Procuro, na estante, companhia para as horas de refastelamento em cadeira articulada enterrada no areal.
No último lazer estival li, entusiasmado, de uma assentada, O Deputado, de Modesto Navarro, que tinha comprado no dia anterior numa tenda de venda de livros e preços reduzidos, junto do parque do Inatel. Uma história misteriosa que agarra o leitor de capítulo para capítulo atrás do detetive Artur Cortez nas suas deambulações entre Lisboa e o Nordeste. Reconhecem-se facilmente, na trama, vários personagens da nossa história recente nas suas conhecidas manigâncias e jogos baixos de poder, alguns deles nossos conterrâneos. Igualmente me deleitou a viagem virtual que o autor vilaflorense me proporcionou à minha Vilariça natal, ao meu nordeste, à minha gente. Por isso, desta vez, estava decidido: o livro que me haveria de acompanhar até à foz da Ribeira da Lage seria Um Caminho Entre Oliveiras de João de Sá, igualmente natural de Vila Flor.
Em boa hora o fiz. Foi entre oliveiras que passei a tarde na praia de Santo Amaro. Mas, ao contrário do fim de semana anterior este caminhar seria mais lento, pausado e sobretudo mais profundo e longínquo. O caminho que se abriu nas areias oeirenses transportou-me não só aos cumes de xisto e granito que bordejam o vale da Vilariça, mas ainda me colocou nos anos da minha infância com um cordel a pender da mão arrastando uma lata vazia de conservas. O som do mar não desconcertava, apenas fazia a música de fundo dos sons que pela mão do autor nordestino me chegavam cortantes como o gélido vento de Bornes, melancólicos como o roncar pachorrento da “Parreca” entre o Cachão e o Barracão ou mesmo os sons silenciosos que ceifaram a vida tuberculosa da Maria de Fátima e os sonhos apaixonados do Serra.
O engenho e sobretudo a arte do Dr. João Baptista de Sá que suponho ter sido, curiosamente, um dos primeiros visitantes do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (CAM-JAP), abriu-me na tarde quente e ventosa do último domingo um caminho entre as centenárias árvores que emolduraram a vida e lhe deram motivos de tantas histórias que em boa hora resolveu dar à estampa. Ficou a praia pejada de metáforas de fino recorte literário e de um calor humano superior à torreira do sol de Agosto. Os passos de regresso tinham um perfume de estevas e pinheiro, um som lângido de carros de bois e um gosto antigo de azeitonas quartilhadas, com centeio de Samões e vinho de Sampaio.
 
É de inteira justiça, no final de um dia em que o Tejo desaguou, como sempre no mar, ineditamente por entre ramos de verde folhagem e azeitonas maduras, fazer minhas as palavras do prefaciador, também ele um ilustre nordestino, Hirondino da Paixão Fernandes, na homenagem que faz à Câmara de Vila Flor e ao seu presidente de então Artur Guilherme Vaz Pimentel esperando que se concretize o seu vaticínio de que “parece ter chegado, finalmente, a hora de os Senhores Autarcas, para não falarmos de outros, verem mais alto que os paralelipípedos da rua, até à data politicamente de mais valia (para “épater le burgeois”) que a Cultura, sempre atirada para o canto dos trastes mais inúteis”
 
O sol de Verão demorou-se mais sobre o Bugio antes de mergulhar no oceano. Era, seguramente mão enegrida de carvão do Jeremias que o sustinha.

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3488

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