A opinião de ...

A Decepada…

Lá no tempo dos meus verdes anos, dos sonhos e frustrações, do tudo ou nada, do convívio e solidão, da ânsia e fortaleza, caminhava de cabeça erguida, não de altivez mas sempre no perscruto e indago. No Porto cidade, diluí-me nas escadinhas e nas penumbras das ruas estreitas, errei nas calçadas e vielas, tornei-me amigo dos beirais e claraboias, inebriei-me no fixar colorido dos azulejos, senti o bater do coração de um burgo que pulsa comigo.
Na sofreguidão do conhecer, no rebobinar desses tempos, revejo-me no descobrir de uma História que, quieta, nos espera e sempre se alegra nesse encontro.
Mesmo há muito, quando rato do Sótão Económico da velha Universidade dos Leões, nos inícios dos 70 de séc. XX, tropecei no insólito, motor explosivo de uma paixão sem travões que aí mesmo nasceu. No meio de uma tarde primaveril, deglutindo o fresco pela margem direita do Douro, já depois de me despedir da Afurada que do outro lado sempre me cumprimenta com o ondular de barquitos coloridos por ali adormecidos, após a velha e desaproveitada Alfândega, resolvi deambular, troquei o passo e ali, defronte da casa onde Philippa of Lancaster deu à luz o nosso Infante D. Henrique, atravessei para o outro lado, cumprimentei o mercado Ferreira Borges, venerei o Palácio da Bolsa e apontei à R. de S. Bento da Vitória que leva direito, mas aos esses, à Cadeia de Relação, bem lá no alto dos Olivais, hospedeira de Camilo e Ana Plácido, junto à Cordoaria.
Aconselhado, aproveitei para ver local de mistério. No âmago do mais icónico e típico Bairro tripeiro, o Bairro da Vitória, ergue-se a Igreja de Nossa Senhora da Vitória construída no aterro da Judiaria do Olival em meados do Sec. XVIII. Cerca de cem anos depois um violento incêndio destruiu o altar mor e a venerada escultura da Padroeira. A Confraria encomenda, de imediato, uma nova Imagem a um jovem, emergente e badalado escultor. Este, arregaçou as ferramentas, seduziu musa de carne e osso, esculpiu uma Santa de face humana e sensual, angelical mas não divina, a suscitar paixões.
O povo, incrédulo, não conseguia venerar uma Santa terrena, pronta a falar. Após amotinações, o guardião do templo, padre receoso, levou a estátua a um curandeiro esteticista, um Santeiro da Maia, povoador de muitos altares lusos, pai de numerosa prol, todos Santos, homens e mulheres de bem.
Olhou-a, revirou-a, perscrutou, analisou, meditou, mediu, interrogou-se, amedrontou-se, pediu conselhos, deixou passar o tempo, perdeu o sono.
Um dia, contam que de madrugada, exaltado e confuso, sem solução para a operação plástica, pega trémulo no bisturi e corta rente, decepa a Santa e cola, naquele pescoço sangrento, uma nova cabeça tão ao gosto do beato povo. O Padre, acovardado, escondeu a verdadeira cabeça que viveu, até hoje, em segredo, nos cofres deste templo.
Só que, espanto, o jovem escultor, jovem e infeliz suicida, é Soares dos Reis, autor da Santa de Nossa Senhora da Vitória e que, desde a tragédia, é A Decepada…

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