A opinião de ...

A discriminação de Cervantes “E o burro sou eu?”

Sabem os meus amigos que “Dom Quixote de la Mancha” é provavelmente o meu livro, o que levaria para a “ilha”, o que gostaria de ter escrito, podendo morrer no instante a seguir, com os olhos a rir e a assobiar, enquanto o fôlego me assistisse, o “Gabriel’s Oboe” de Morricone. Mas uma coisa do livro me anda atravessada e só me dei conta disso há pouco tempo.

O fidalgo que rasava os cinquenta anos, “de compleição rija, seco de carnes, enxuto de rosto”, pode até ter tido dificuldade em arranjar um nome que assentasse ao seu cavalo – e pouco importa que, embora branco, o dito fosse fraco, pequeno, magricela, desengonçado, uma pileca, enfim – certo é que tinha nome: Rocinante.

E como se chamava a montada do atarracado, gorducho e fiel companheiro Sancho Pança? O genial Miguel de Cervantes não lhe deu nome.

“Ruço!”, gritam-me desse lado.
Agradecido, mas não. Sempre com minúscula, “ruço” diz apenas e só a cor do animal, podendo ter-se usado uma qualquer outra: pardo, pardacento, acinzentado, etc. Pouco importa que o burro fosse obediente, manso, bonacheirão, frugal e até pensativo. O ponto é que não teve direito a nome. É, valha a verdade, um dos mais ilustres anónimos da literatura universal. Contudo, na esfera de qualquer direito conhecido, não é isso uma discriminação?

A bem ver, cedo, pela segunda saída do nosso cavaleiro, as coisas ficam claras. Sancho acredita na promessa da ilha e outras que tais, deixa mulher e filhos, ajusta-se por escudeiro, e, porque não se ajeita no andar a pé, diz que levará consigo um asno muito bom… (ora, logo ali começa a asnear, porque…)

“Ao asno fez algum reparo Dom Quixote, imaginando se teria na lembrança algum cavaleiro andante que se acompanhasse de escudeiro asnalmente montado, sem que lhe viesse algum à memória; mas, posto tudo isso, determinou que o levasse, na condição de o prover de mais honrada cavalaria em havendo para tal ocasião”. (Trad. Miguel Serras Pereira).
Não houve, como sabemos. Corriam os inícios de 1600 e, repito, monossilábico que fosse, o burro não teve direito a nome. Vejo nisso certa atualidade, uma vez que os alforges do burro estão ainda atulhados de preconceitos e injustiças.

Não é apenas Portugal que trata mal os burros. Também, como se viu, a Espanha de Cervantes, também o Brasil de Scolari (sim, o subtítulo destas linhas tem créditos; ele o formulou numa célebre conferência de imprensa, no estádio do Dragão, após o descolorido jogo em que Portugal empatou a 0, com a Finlândia, apurando-se embora para o Euro 2008). Abreviando: com muito honrosas exceções, o mundo trata mal os burros, ao menos, e não é pouco, no que respeita à sua reputação.

O dia 8 de maio de cada ano, Dia Internacional do Burro, foi criado para o esvaziar desse peso. Foi a efeméride, aliás, que me puxou estas linhas.

Pela minha parte, devo confessar, sou como Sancho Pança: onde quer que veja um, vão-se-me atrás os olhos e a alma. Gosto de burros. Se algum dia escrevesse um livro sobre eles teria de lhe por uma cinta em que se lesse esta advertência: “contém palavras deformadas por excessos de ternura”.

“E o burro sou eu?” Devo ser, pois.

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3830

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