A opinião de ...

Uma história verdadeira

Olossato, tabanca (aldeia) e aquartelamento da tropa portuguesa. Guiné, 1970, algures no centro do território. Animata é nome de mulher fula - uma das várias etnias guineenses. Senhora com cerca de 40 anos. Um dos filhos alistou-se no movimento libertador; outro permaneceu na tabanca controlada pelo Exército Português, alistando-se nas fileiras da tropa colonizadora. Como se sentiria esta mulher, perante um ataque ao aquartelamento? Um filho, eventualmente atacando as nossas tropas, outro, defendendo-as, em nome da pátria portuguesa…!
Ora, um dia, nesses anos setenta, cheguei à fala com a senhora Animata. Ela, confiando no graduado português, arranhando um crioulo percetível, segredou-me:
- Sabes, alferes, estou sempre triste. O meu coração aperta. Quem vencer, também perde.
Vinte anos depois, reencontrei, no Olossato, Animata, muito idosa, mas consciente, a quem revistei. Não me reconheceu de imediato. No fundo de si mesma, notei uma réstia de lembrança. Convidou-me, agora cooperante, em paz:
- Entra na minha tabanca.
Sentados num banco, à sombra fresca do alpendre da sua casa, mostra-me duas fotografias: uma, de um soldado feito capitão das tropas do seu País; outra, de um cidadão que tinha como fundo a Praça da Figueira, Lisboa. Os seus filhos. Destinos distintos.
Depois, dando-me as suas mãos calosas, sedosas, falou:
- O meu coração não aperta. Os meus filhos escolheram o seu destino. Estão bem e em paz. Tu, que me visitas, recebe este pano pente guineense (símbolo da paz que se coloca no ombro), em sinal de amizade.
Este episódio transporta-me ao sofrimento de tantas mães ucranianas (e russas…) que, por certo, padecem, vendo os seus maridos e filhos, elas próprias, lutarem e morrerem. Refugiadas, as mulheres ucranianas, milhões são, têm acolhimento por esta Europa.
É de estranhar? Não e sim. É o convívio de tantos séculos que gerou sociedades que se cruzaram num percurso transfronteiriço, vincado, mesmo após a independência relativamente à ex-União Soviética. Sabemos: cerca de 25% da população ucraniana é de etnia russa e aproximadamente 50% da população ucraniana fala russo, uma parte significativa como primeira língua. Esta relação foi truncada violentamente pelo invasor. Mulheres sofridas, todas, de ambos os lados, com uma diferença muito dramática: as ucranianas vendo suas casas e bens arrasados, perdidos – o poder e a ambição que destroem, que matam, que violam. É vê-las correr, destroçadas, por esta Europa, filhos ao colo ou pela mão.
A hospitalidade é apanágio de civilizações distintas: orientais, africanas, europeias. Donde deriva este sentimento tão sagrado em receber bem o estrangeiro? Há imensos exemplos que ilustram este caráter hospitaleiro. Refiro dois, muito espaçados no tempo: (i) no livro do Génesis (18, 1-8), é referido que Abraão recebeu três hóspedes, que, sem imaginar, eram dois anjos e o próprio Deus!; (ii) a concessão, à revelia, de passaportes portugueses a judeus por Aristides de Sousa Mendes! A hospitalidade é um aspeto da dignidade humana respeitando os mais fracos, os desfavorecidos, os refugiados. O ser humano existe em si mesmo e não como meio. Não tem preço, mas tem dignidade.

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3890

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