A opinião de ...

Nascera a Liberdade…

A mudança acontecera há cerca de seis anos. O monte Godim, no topo do qual brilha a Igreja do Bonfim na cidade do Porto, fará parte, para sempre, das memórias de quem por aqui viveu juventude interrogada, entre crescimento físico e mental. Foi nestes ares, em tertúlia do café Capa Negra I, que interiorizei a vastidão do pensamento social para além do ninho em que crescera.
Agora, noutro lugar, ouvindo os rugires do mar que todos os dias me olhava de frente, fazendo parte de um de dois mundos antagónicos, residencial de classe média e dois inquietos bairros sociais, D. Leonor e Pasteleira, entalados entre a Foz e o Fluvial, nas bordas do Cálem, em Massarelos, aqui confrontei-me comigo. O Varanda da Barra, um dos mais emblemáticos poisos/cafés estudantis da época, com soberba varanda debruçada sobre as águas do douro que em tons prateados se entregava ao mar, foi confidente ajuizado de amores e conspirações de revoltas do Ipiranga.
Seriam cerca das cinco da manhã de um dia de semana, o telefone, com caixa mealheiro acoplada, retiniu assustadoramente no hall da casa. Zeza, minha irmã, apavorada pelo desuso da hora, sacou do auscultador com as forças do medo. Do outro, outra irmã, a Luzia, moradora em Lisboa, dava notícia imprevista, avassaladora, um Golpe de Estado, militar, estava em marcha na capital, o derrube do governo era o objectivo.
Estávamos num Abril ameno pois que não me lembro de guarda-chuva ou gabardine, sei que por volta das oito desse dia 25 teria uma das últimas aulas lá no sótão da Universidade do Porto, na velha Faculdade de Economia nos Leões, de partida para o lugar de Asprela, juntinho ao Hospital de S. João.
Como sempre, desci, galgando as escadas de um terceiro andar, desprezando o vagaroso elevador, a tempo de me juntar ao último punhado de gente abocanhada pelo 35, autocarro de dois pisos que, a partir daí, desbravava os caminhos das Condominhas, Lordelo, Campo Alegre, Galiza, Cordoaria, Loios, Batalha, Poveiros, S. Lázaro, Heroísmo e Campanhã.
Já sentado, no piso de cima, os do costume: estudantes, bancários, caixeiros, funcionários públicos, policias e gente comum, calados e sonolentos. Nenhum manifestava posse de notícia tamanha, os olhares vagos trespassando o casario ainda encoberto, garantiam-me ser eu mesmo o detentor de rastilho em brasa.
E eis o filme, um autocarro, lotado, rolando pela rua D. Manuel II, perto do Museu Soares dos Reis, abeira-se do quartel CICAP e, espanto geral, todos de pé e boquiabertos, à vista soldados entrincheirados entre sacos de areia , de armas em riste e fácios expectantes compunham quadro para a História. E é aí que entro em cena gritando - há um Golpe de Estado em Lisboa!!!. Soltara o meu 25 de Abril, Nascera a Liberdade…

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3881

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