A opinião de ...

A linguagem corporal

Lembro-me de por altura das festas em honra da Senhora das Graças acudirem a Bragança na esperança de arrecadarem bastantes moedas, as notas eram escassas para a maioria da população, homens, mulheres e crianças exibindo os seus aleijões e outras disformidades. Num País sem assistência social digna desse nome, os tolheitos de tudo recorriam à caridade revelando monstruosidades vulgares (obrigado José Régio) e invulgares cujas imagens dessa linguagem corporal estabeleciam o contraste entre os de corpos são e aqueles que por deformação de nascença ou acidente se viram impossibilitados de viverem normalmente, fazendo parte do conjunto, numeroso, das criaturas susceptíveis de causarem horror (os queimados e donos de feridas purulentas) e olhares de admiração, dó e piedade ao exemplo do Homem Elefante exibido em itinerância dando origem a um filme de Lynch, tendo o actor «elefante» morrido recentemente.
Estes forçados actores na cata das moedas entoavam litanias acompanhadas de gestos chamativos de olhares sobre as chagas, desenvolvendo desta forma uma linguagem corporal a propiciar múltiplas leituras e comentários estudados entre outros pelo italiano Umberto Eco.
Outros estudos e análises têm-se centrado nas novas linguagens corporais, caso das tatuagens, seu significado simbólico e transmissão de sucesso, imaginação e realidade, travejamentos vitais e virais nas redes sociais. No tempo da guerra colonial muitos militares mandavam inscrever, normalmente nos braços, corações entrelaçados e o nome da namorada, outros, uma simples tira a dizer «amor de mãe», ainda o nome da colónia para onde tinham sido atirados sem saberem a causa e os porquês.
A deputada Isabel Moreira gravou num braço um data a comemorar o casamento de duas pessoas do mesmo sexo, ela por um lado não quer esquecer no seu entender o memorável dia, por outro ao riscar o ar com o níveo braço balouçando e efeméride transmite a alteridade do antes e do agora, da firme convicção de os partidários desse género de matrimónio não serem estropiados mentais.
Nesta altura encontro-me na praia do Baleal, nas suas areias deitam-se, sentam-se, dormem, jogam, e brincam milhares de corpos, muitos deles cravejados de cromáticas e incisivas tatuagens a lembrarem bandas desenhadas, a fazerem corar de inveja os cartunistas imaginativos.
A nudez deixou de ser ofensiva, longe vão os tempos em que um socialista não foi ministro por a sua então mulher se desnudar nas representações teatrais, as coloridas tatuagens dos jogadores de futebol, cantores e toca-discos, transformaram o corpo num cardápio pictórico de molde a intrigar os abstracionistas, nada está interdito em matéria de insólito, carnes opulentas cobrem esqueletos como se Rubens estivesse no centro da inspiração, a desmesura reinante leva à interrogação: o que falta fazer? Temos as automutilações, temos a plastificação dos físicos, temos a narcisista contemplação mesmo que grotesca, temos o vestuário propositadamente roto os rasgado estrategicamente, temos o esplendor do destapa, temos a fragmentação do pudor nas várias linguagens, contínuas assombrações a predizerem mais e mais ultra realismos. Estaremos ante uma praga de ensandecimento?

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