A opinião de ...

Ser político

Ser político
(Adaptado do original)

Eu não posso ser político.
Se eu fosse político, como poderia afirmar,
Aos microfones e perante as câmaras,
Por exemplo, assim:

“- Cidadãos! O meu Governo é o melhor de todos”,

Se, no meu país, deixar que haja crianças a morrer sem nome,
Velhinhos a sofrer a solidão e a fome,
Barracas a cair de velhas, buracos a crescer de velhos,
Lágrimas de revolta e o consentir
Como se pode assim mentir?

Se, no meu país, deixar que haja
Escolas velhas, histórias de corrupção,
E fizer com que os jovens, pais e mães
Vão sonhando possuir a força de não poderem consentir
Um governante assim, tão igual a mim?

Se, no meu país, deixar que as distâncias
Se afirmem separadas por barreiras impossíveis de transpor,
Fizer com que o meu povo beba misérias destiladas de suor
E, curvado, erga o seu pão, em pedacinhos, do chão?

Eu nunca poderia ser político.
Se eu fosse político, como poderia afirmar,
De cabeça levantada, sem corar,
Sem gaguejar, sem me envergonhar,
Como poderia afirmar aos microfones e perante as câmaras,
Que o meu Governo é que é o melhor,
Se rios de água clara e murmurante deixarem de ser rios
Para se transformarem em lixeira repugnante?

Se as praias, hoje limpas, sejam focos de infeção,
Onde, incauto e imprudente, vai banhar-se o cidadão?
(Entenda-se o cidadão que em mim votou e faço com que ele,
Curvado, recolha o seu pão, em pedacinhos, do chão).

Se assistir, de longe, aos fogos da floresta
E hesitar em cuidar de quanto ainda resta?

Como poderia eu ser político assim, a dizer a cada passo:
“- Votem em mim! Votem em mim!”
E afirmar, aos microfones e perante as câmaras,
Que o meu Governo será o melhor,
Se eu e os meus amigos ganharmos muitas de mil
E houver gente que desconhece o perfil dum ceitil?

Se eu e os meus amigos nos pudermos dar ao luxo
De tentar enrolar o Povo que não se cala, porque tem razão,
E exercermos contra ele a força
Numa rádio, num jornal, ou numa televisão
Que temos aqui, mesmo à mão?

Se eu e os meus amigos não aceitarmos as opiniões dos outros,
Que são muitos, sabendo que esses muitos
Têm como nós iguais direitos, e representam a vontade
Que lhes foi outorgada pelo Povo, no escuro ventre dum caixão?
(continua no próximo número)
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(continuação do número anterior)

Como é que poderia ser político, afirmando constantemente
Que eu é que sou bom, se não regular a segurança para os fracos,
A prisão para os devassos, as leis para os relapsos,
O chicote para os macacos?

Se deixar que as leis para uns sejam boas
E para outros sejam más, de tal modo que os uns, contentes,
As possam ler para a frente; e os outros, infelizes,
As tenham de ler para trás?

Se detiver, em meu poder, bem segura, entre os dedos,
A caneta que tanto pode criar como tirar os medos?
Se possuir um olhar fixo, bem pouco humano,
E, num esgar de riso, um rosto de facínora tirano?

Se de mim próprio, às vezes, duvidar,
Se diante do perigo me acobardar
E não deixar de temer, como temo
(Quantas vezes tremo disso!) a ponta afiada da navalha
Que fura, rasga, esfrangalha, a retalhar-me o toutiço?

Como poderei eu ser político
E afirmar, perante os microfones e as câmaras,
Que sou o melhor,

Se consentir que, no meu País, herdado de altos avós,
Venha meter o nariz, quem queira mandar em nós?

Se consentir que o meu Povo seja o último a fruir
De bens que, em cansaço e dor, é obrigado a produzir,
Quando o dinheiro de fora, presumindo-se maior,
Olha de alto, para o nosso, depreciando-o, a rir?

Se ignorar que arruaceiros, nacionais ou estrangeiros,
Sejam reis em zaragatas, nas nossas ruas paradas,
Deixando-os sem castigo, sem umas boas pauladas…
Mas lhes der força e abrigo para continuarem assim,
Rindo de vós e de mim?

Eu nunca poderia ser político.
Eu, assim, nunca poderia ser um bom governante
E afirmar, de forma tão arrogante,
Que sou o melhor, se não criar condições
Para que se lavrem os campos,
Não olhar pelos agricultores, homens de arado e de enxada
Que, em meia hora de horrores, (de granizo ou trovoada)
Ficam sem nada?

Eu, realmente, nunca poderei ser político,
Se não olhar pelos atores, os banhistas,
Os pintores, os caixeiros,
Os calceteiros, os carpinteiros…

E todos queles que não mencionei
Mas nem por isso desconsiderarei?

Na verdade,
Eu nunca poderia ser político!

Edição
3978

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