A pia, a brasa e a sardinha…
Por vezes, por força dos anos, já tenho dificuldade em distinguir a realidade da ficção. Foi o que me aconteceu a propósito duma cena em que o nosso Presidente da República, perante a avalanche de greves, resolveu promover uma reunião com um representante de cada sindicato para lhes apalpar a motivação quanto aos fundamentos das suas reivindicações. Talvez com segundas intenções, como é seu timbre, chamou também o Zé Povinho para a mesma reunião. É dos diálogos mais importantes dessa reunião – não sei se real, se fictícia – que vos dou alguns excertos.
O primeiro a usar da palavra foi o representante do sindicato dos juízes. Num tom categórico, foi direto ao assunto:
- Nós, os juízes, achamos que este governo não nos trata com a dignidade devida, pagando-nos um mísero salário de alguns milhares de euros. Ora, como todos sabem, nós somos os alicerces do Estado de Direito. Sem nós, o Estado seria impossível e a sociedade, uma selva. Por isso, queremos ser pagos em conformidade com esta nossa função social.
O representante do sindicato dos Procuradores do Ministério Público não gostou do que ouviu e reclamou:
- O meritíssimo juiz está a esquecer-se de que sem procuradores a sua função não existe, uma vez que só pode haver julgamento depois de haver acusação, e esta exige um grande labor de investigação. Por isso, mais do que os juízes, os procuradores devem merecer outra atenção, em termos salariais, por parte do governo.
- Como é que os juízes e os procuradores poderiam desempenhar as suas funções judiciais se não tivessem saúde? E o mesmo se diga dos políticos e de todos os cidadãos em geral: sem saúde, como poderiam viver? E, se a resposta é óbvia, outra pergunta se impõe: quem é que trata da saúde dos portugueses? Por isso, por muito que nos paguem a nós, os médicos, é sempre pouco para o muito que fazemos pelos portugueses.
- Nós, os enfermeiros, já começamos a ficar fartos da pesporrência dos médicos que nos tratam como se fôssemos seus criados, numa demonstração clara dum snobismo parolo que chegou ao ponto de já não quererem ser chamados «doutores» porque, segundo dizem, até os enfermeiros são chamados doutores. Eu aconselho-os, por isso, a que se chamem «doitores da mula russa», porque no fundo «dói-lhes» o cotovelo pelo facto de alguns dos enfermeiros terem mais anos de estudos do que alguns deles.
- Mas, afinal, algum de vós seria o que é, se não existíssemos nós, os professores? Por isso, quem merece outra atenção e outro tratamento, por parte do governo, somos nós, os docentes.
- Olha quem fala!... Como é que as escolas, os tribunais e os hospitais funcionariam se não houvesse transportes? E como é que os transportes rodavam sem nós, os motoristas?
- E como é que os motoristas trabalhavam e tudo o resto funcionava, se não existissem os polícias a porem ordem em todo o lado?
Já cansado de os ouvir, o Zé Povinho levanta-se para abandonar a sala. Mas o Presidente Marcelo, sempre atento, diz a um dos seus assessores para chamar as televisões, enquanto ele se dirige ao Zé Povinho a dar-lhe um abraço e a perguntar-lhe: então, meu príncipe e meu rei, aonde é que ides? Estais com algum problema?
- Olhe, Incelência, já vi que os antigos é que tinham razão ao dizerem: cada um puxa a brasa à sua sardinha. Mas, pior que isso, eu é que lhes arranjei as brasas e as sardinhas, e nem uma me deixam. Para mim sobram apenas as espinhas.
- Não se vá embora, porque eu vou obrigar o António Costa, na frente das televisões, a dar-lhe uma caixa de sardinhas e um saco de carvão.
- Não vai, não, Incelência, porque, no fim disto tudo, depois de todos se banquetearem com as sardinhas que eu lhes arranjei, ainda vão querer que lhes lave os pratos, os copos e os talheres, porque já dizia o meu avô: «pia de muitos, bem comida e mal lavada». Por isso, fiquem todos bem, que eu vou procurar poiso noutro lado. Ainda bem que existe a emigração!...