Do alto dos oitenta e tal anos A alimentação
Um velho amigo e vizinho que conheci há vários anos, infelizmente já falecido, com o qual ocasionalmente conversava à mesa do café, afirmava que lhe fazia muita confusão o facto de, nas casas que possuíam um espaçoso logradouro, em vez de o encherem com flores e relva (que até ficava bonito), o haviam de cultivar, evitando, assim, despesas que, como nalguns casos conhecidos, atrapalhavam um pouco o orçamento familiar.
Além de pragmático, era um indivíduo que pouco se comovia com histórias da carochinha e muito menos com conversa fiada.
Contudo, depois de lhe fazer ver que ninguém resolveria a questão da alimentação com a exploração do quintal, não deixava de me dar razão. Dizia-me, então, que era uma questão de princípio, pois sabia muito bem do que estava a falar.
Passados anos sobre esta troca de impressões, eis que vim saber pela Comunicação Social que existem atualmente em Portugal centenas de milhar de pessoas que recorrem aos bancos alimentares contra a fome.
Ora, como vivemos em democracia e a democracia é um regime político em que o povo elege o Governo que o representa, daí resultaria haver motivo para aceitar incondicionalmente as decisões que são tomadas pelos eleitos em relação aos eleitores. Será assim? Pois, se o povo elege quem o representa e quem o representa permite que haja centenas de milhar de seus eleitores a viver na pobreza (a ponto de se verem obrigados a recorrer a quem lhes possa valer para conseguirem prosseguir a sua caminhada de vida), parece-me ser oportuno que tais eleitores tenham de refletir sobre a qualidade do voto que exercem.
É lamentável o que se ouve na comunicação social sobre o problema da fome e a pobreza em Portugal, tanto mais que, tendo sido este um país cuja agricultura se manifestava pela sua qualidade e quantidade, assim deveria continuar, e até aumentar a sua produtividade, pois que, em vez da que foi vergonhosa exploração do trabalho braçal, poderia muito bem utilizar-se a maquinaria apropriada que já existe para o efeito.
Se não existissem organizações, cuja força se baseia na solidariedade e no voluntariado, sustentadas pela boa vontade do povo a quem pedem ajuda, muito naturalmente aumentaria o número das pessoas com fome.
Proporcionar ao povo as condições adequadas para que esse povo consiga evitar o desespero da fome, não é nenhum ato caritativo, mas sim responsabilidade e obrigação. Há perguntas, que, neste contexto, não pode deixar de serem formuladas, como, por exemplo: “Que prioridades poderão sobrepor-se àquelas condições?”
A fome cria miséria e doenças que, por sua vez, são fonte de pandemias contra as quais, sendo difícil lutar, fazem com que a população gradualmente vá definhando.
Costuma dizer-se que, no nosso país, não há violência. Não haverá violência comparando-a com a de outros países, nos quais, além dos protestos e das greves, a mesma conduz quantas vezes, até à morte!
Se aqui, em Portugal, a pobreza ainda tem quem a vá socorrendo, decerto que naqueles países, não existirão organizações capazes de obviar o desespero de quem vive com fome. E, no nosso país, até quando a solidariedade do povo poderá ajudar a alimentar os que vão suportando esta grave situação?
Quando acabar esse tempo, poderá dizer-se ainda que o nosso país continua a ser um exemplo de bons costumes e, consequentemente, não existe nele a violência?
E, na situação de violência, acabará por aparecer a repressão? É que toda a repressão implica força tanto desmedida como injusta e incompreendida! Então, quais serão as consequências desta imaginada conjuntura?