A opinião de ...

A propósito da liberdade de Expressão…

Nas tertúlias entre amigos, quando a conversa resvala para os direitos da pessoa humana, gosto de referir um princípio: “direitos humanos são todas as liberdades que um homem tem só pelo facto de ser homem”. Estas liberdades não têm limites a não ser os direitos (liberdades) reconhecidos a outros homens; como alguém já disse, a minha liberdade começa quando começa a de outro homem. Depois dos atentados em França, (massacre dos humoristas do jornal Charlie Hebdo) discute-se os limites da liberdade de expressão, ou seja, da criatividade jocosa (de forma escrita, cartoon ou banda desenhada, etc.) sobre aspectos de qualquer religião; alguns humoristas traçam, segundo as suas opiniões, o aspecto risível e caricato de uma religião e esquecem o que para umas pessoas é ridículo para outras pode ser algo de mais sagrado. Muitos nem imaginam que tais críticas afrontam os sentimentos religiosos de outras pessoas; podem não querer ofender, mas a verdade é que os fiéis ou praticantes de quaisquer outras religiões ficam revoltados ao verem os seus símbolos desvirtuados e enxovalhados.
Mais cedo ou mais tarde, esta questão da liberdade de expressão sobre temas religiosos (como exercício de um direito) na Europa será objecto de queixas nos Tribunais e depois, em última instância, apreciada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH); então, ficaremos a saber os seus limites, ou seja, em que termos este Tribunal considera se foi ou não violada a liberdade de expressão consagrada na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). Esta Convenção, no seu artigo 9º, -consagra o “ princípio da liberdade, de consciência e religião”. O artigo 10º, nº 1, tem a seguinte redacção: - “qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e de receber transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerências de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras”. Será bom lembrar que a liberdade de expressão é um dos pilares da nova construção europeia. A nossa sociedade reprova a violência; o facto de alguém se sentir ofendido não significa que lhe assista qualquer razão para fazer justiça (vingança) pelas próprias mãos, indo ao ponto de matar seres humanos, pôr bombas, destruir bens e praticar toda a espécie de barbaridades em nome ou defesa de um qualquer deus como se esse deus na sua fraqueza necessitasse da protecção do homem.
Como vivemos numa sociedade democrática, por natureza livre, com direitos e, é bem lembrar, e com deveres, temos de fazer a destrinça entre uma crítica satírica como manifestação de ideias, que deve ser livre, e a ofensa ou injúria que atinge a dignidade de qualquer pessoa. Temos de ser frontais e capazes de separar o trigo do joio: uma coisa é a crítica (livre) de alguns aspectos de uma qualquer religião, outra bem diferente é o desrespeito pelas figuras e símbolos considerados como sagrados e ultrajar os sentimentos religiosos dos praticantes de uma religião. A crítica como uma ideia combate-se com outra ideia geradora de diálogo entre todos os homens, aliás um dos esteiros da democracia; mas, a uma ofensa responde-se com outra ofensa; o insulto retribui-se com outro insulto que é gerador de violência e a esta reage-se com mais violência e, cedo ou tarde, surge o conflito armado. Quando a crítica passa do campo do combate das ideias para o campo da ofensa, do insulto e do ultraje clama-se por Justiça, e como esta é difícil de pôr a funcionar, entramos no domínio da justiça pelas próprias mãos, ou seja, resvalamos para o campo da vingança, do ajuste de contas e, por fim, da selvajaria humana. E, em vez de se vivermos numa sociedade democrática, dialogante e respeitadora dos direitos de cada um, temos uma sociedade em permanente conflito.
Esta questão da falta de respeito pela religião de cada cidadão e seus símbolos não é pacífica e o nosso actual código penal também não a descorou; veja-se, a título de exemplo, o artigo 251º nº 1 do Código, na secção II – dos crimes contra os sentimentos religiosos - do capítulo IV - crimes contra a vida em sociedade: - “quem publicamente ofender outra pessoa ou dela escarnecer em razão da sua crença ou função religiosa, por forma adequada a perturbar a paz pública, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”. Segundo este preceito do nosso direito penal e para qualquer cidadão não ter problemas com a Justiça, aconselha-se a ter muito cuidado quando se escarnecer (zombar, molestar, segundo o dicionário) de uma pessoa por motivos religiosos de forma a ser perturbada a paz (ordem) pública. Mas, não se pode confundir a ofensa com uma simples transgressão… aquela transgressão que faz evoluir o mundo, no dizer do nosso Miguel Torga.
Há tempos escrevi uma crónica – direito e humor - (edição 3.480 deste Jornal) - onde dizia que o direito e o humor têm uma convivência difícil e os ditadores (que se julgam superiores aos ditames legais) se dão mal com o humor, perseguem e até eliminam fisicamente os seus autores. Se o líder religioso é ao mesmo tempo o líder político, como acontece no Estado Teocrático, mais difícil será este aceitar o humor. O mesmo acontece no Estado Confessional em que existe uma religião oficial do estado. E, quando o humor tem como tema principal a religião de um estado teocrático ou confessional, (regimes da maioria dos países islâmicos) não há que esperar abraços e beijos ou convites para jantar dos seus seguidores mais fundamentalistas. Para estes, como para os crentes de uma qualquer religião, quando o humor toca os seus símbolos ou princípios religiosos há que ter em consideração um velho ditado português: graças a Deus muitas… graças com Deus poucas.
Depois das eleições na Grécia, alguém disse: o homem que perde direitos, perde parte da sua liberdade; mas o homem que perdeu todos os direitos é o homem mais livre do mundo.

Edição
3515

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