Democracia: entre a retórica e a realidade
A histeria é um vício antigo da política portuguesa. Basta alguém sugerir uma revisão constitucional – mesmo que dentro dos limites mais conservadores – para que logo surjam os arautos do apocalipse a clamar o fim da democracia, o regresso do salazarismo, ou, pior ainda, uma distopia à la Orban. As eleições de 18 de Maio deram à direita parlamentar, pela primeira vez em meio século de democracia, a possibilidade matemática de rever a Constituição sem o aval do PS. E foi quanto bastou para que os supostos defensores da democracia, em bicos de pés e com o nervo sensível, soassem o alarme.
Ora, como escrevi anteriormente, uma revisão constitucional — à direita ou à esquerda — dificilmente, por si só, porá em risco a democracia. O verdadeiro problema está noutro lado. E é aí que entra a minha perplexidade: como podem aqueles que tanto bradam contra os perigos de uma revisão constitucional manter um silêncio cúmplice perante um sistema eleitoral que degrada, todos os dias, essa mesma democracia que dizem defender?
Não me refiro ao habitual bode expiatório do populismo. Refiro-me, sim, a um sistema que impede milhares de portugueses de exercerem o direito de voto, veda aos cidadãos independentes a possibilidade de se candidatarem à Assembleia da República e distorce grosseiramente a representação parlamentar.
Na última eleição, milhares de portugueses recenseados no estrangeiro ficaram, mais uma vez, sem receber os boletins de voto. O Estado aprovou uma lei que prevê o voto postal, mas depois foi incapaz de garantir a sua execução. O resultado? Um direito constitucional anulado por inércia administrativa que depois se mascara de “abstenção”. Não houve desinteresse: houve exclusão.
E o que faz a Comissão Nacional de Eleições? Cumpre o ritual: recebe as queixas, emite um parecer morno, nada muda. O eleitor é humilhado pela impotência do Estado e pela indiferença dos que deviam zelar pela integridade do processo eleitoral. E os paladinos da democracia calam-se. Afinal, este tipo de erosão não dá manchetes, nem alimenta narrativas heroicas.
Mas não ficamos por aqui. O nosso sistema mantém, com zelo quase religioso, o monopólio partidário do acesso ao Parlamento. Um cidadão, por mais competente, respeitado ou mobilizador que seja, não se pode candidatar sem se ajoelhar perante a maquinaria partidária. E que maquinaria! Os processos de selecção de candidatos são opacos, formais e controlados por pequenos caciques com vocação de comissário político. Resultado? Uma degradação progressiva da qualidade das listas, do debate parlamentar e da confiança pública.
Hoje, a Assembleia da República representa mal — e representa poucos. A maioria dos eleitores não faz ideia de como são escolhidos os candidatos que aparecem nos boletins de voto. Os partidos refugiam-se em lógicas internas, protegem clientelas e bloqueiam a renovação. E os que deviam protestar preferem proteger o status quo, talvez porque nele assentem os seus próprios lugares.
Como se não bastasse, temos ainda a aberração da distribuição dos mandatos. Veja-se o exemplo gritante: o círculo da Europa, com perto de 950 mil eleitores, elege dois deputados; Leiria, com menos de metade, elege dez. O círculo fora da Europa tem mais de 630 mil eleitores, também com dois deputados; Santarém, com cerca de 377 mil, tem nove. E Lisboa, sozinha, elege mais de 17% do Parlamento. Que representação é esta?
A democracia, dizem-nos, está em perigo. Pois está. Mas não por causa de uma eventual revisão da Constituição. Está em perigo porque não assegura o direito de votar, o direito de ser eleito e o direito de ser representado com justiça. Está em perigo porque foi sequestrada por aparelhos partidários que a tratam como feudo. Está em perigo porque há um fosso crescente entre o povo e os que o dizem representar.
Querem defender a democracia? Comecem por reformar o sistema eleitoral. Simplifiquem as leis, reduzam o número de deputados para os 180 mínimos já permitidos pela Constituição, criem círculos uninominais com número semelhante de eleitores, admitam listas de cidadãos independentes, introduzam círculos de compensação para que cada voto conte e obriguem os partidos à transparência na escolha dos seus candidatos — não apenas por popularidade, mas por idoneidade, credibilidade e competência.
A democracia não vive de declarações inflamadas nem de indignações selectivas. Vive da participação efectiva dos cidadãos e da confiança nas instituições. E essa só se constrói com reformas sérias, não com discursos de conveniência.
Portugal merece uma democracia à altura da sua maturidade. Não uma peça de teatro onde tudo se decide nos bastidores e o povo apenas assiste, impotente, à encenação.