A opinião de ...

As Crianças

Volver a África, fazendo-o sem saudosismo, sem angústias, sem contrição, antes com amor, compreensão, solidariedade – um imperativo emocional. Sem esquecer o meu rincão. Nasceu da vontade de regressar ao terreno onde houve guerra – uma guerra em que participei, que nunca compreendi, que aceitei por comodismo. A terra libertada foi meu objetivo de visita após a independência. Terra libertada? Com esta liberdade, feita de penúria, de conflitos, de desigualdades e de esquecimento dos desfavorecidos? Tornou-se uma espécie de sina. Em África, pude apreciar o quanto a vida vale, ou nada vale, apercebendo-me que se aprende mais vivendo as realidades, do que estudar economia, sociologia e gestão, desfasado do mundo. Lembro-me das crianças africanas, sem esquecer as nossas. Estas, as nossas, que terminado está o ano escolar, não usufruíram da liberdade de aprender, brincar, crescer – como me referia, enfaticamente, o Prof. Miranda Rei; estas, que caminharão, conformadas, com a imagem do distanciamento e da máscara – algo ‘contra natura’ que dura há quase dois longos anos; estas, que lutam por um mundo despido de intolerância, por um planeta limpo e desejam espaços para povoarem alegria campos e cidades; estas, que, “agarradas” pela tecnologia, vão perdendo o sabor das histórias contadas pelos avós e em leituras tão saborosas. Sabemos, igualmente, que muitas sofrem as consequências da penúria que vivem algumas famílias, mas que, apesar de tudo, brincam, às vezes…sem brinquedos!
Aquelas, as africanas, que têm espaço amplo junto das bolanhas, onde guardam vacas e cabras, e nas matas ajudam no corte de arbustos para lenha, e assistem à preciosidade de ver um qualquer sr. Martinho a pescar artesanalmente na embocadura do riacho que corre no tempo das chuvas para os lados de Mansoa; aquelas, que espantam os pássaros nos eirados para não devorarem o arroz; aquelas, que empurram os arcos feitos de restos dos pneus, puxados por ganchetas (os mais velhos lembram-se…), aquelas, que à nossa passagem sorriem sorrisos tão límpidos. Mas, igualmente, aquelas que não têm médico nem centro de saúde, aquelas que supuram pelos ouvidos, aquelas que tossem convulsivamente, aquelas que nem chegam aos dois anos de vida, porque a malária e a subnutrição as dizimam, aquelas que não vão à escola, aquelas que se veem privadas da sua completude morfológica (a excisão das meninas…); aquelas, que carregam molhos de capim colhidos na bolanha para cobrir as casas. Aquelas. E estas.
Transcrevo, a propósito, um parágrafo do documento Objectivos de Desenvolvimento Sustentável – Ainda é possível mudar – 2030, da UNICEF: «Não pode haver desenvolvimento sustentável, prosperidade ou paz sem equidade – oportunidades justas para cada criança e cada adolescente. Se as crianças e os adolescentes mais desfavorecidos não compartilham desse progresso, ele não será sustentável».
Relembro, atualíssimas, as palavras de Jesus, segundo Mateus: «…Depois [os fariseus] trouxeram as crianças a Jesus, para que lhes impusesse as mãos e orasse por elas. Mas os discípulos os repreendiam. Então disse Jesus: Deixai vir a mim as crianças e não as impeçam, pois o reino dos céus pertence aos que se lhe assemelham».
Pergunto: o que estamos fazendo pelas crianças deste Mundo?
Paulo Cordeiro Salgado – 25 de junho de 2021

Edição
3839

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