A opinião de ...

Cristianofobia na análise da perseguição

A perseguição mais perigosa não é a declarada, mas a que se esconde envolta em insidiosas narrativas.
Em pouco mais de um mês, deram-se dois ataques que envolveram fiéis de dois credos diferentes. Em março foram atacadas duas mesquitas na cidade de Christchurch, na Nova Zelândia. No dia de Páscoa ocorreram atentados em três igrejas e quatro hotéis de luxo no Sri-Lanka. A relação entre os dois permitiu as mais diversas leituras e aproveitamentos.
Uns destacaram os números que comprovam que os cristãos são os mais perseguidos no mundo e acusaram os média e os líderes ocidentais de não darem o mesmo tratamento aos dois acontecimentos. Enquanto que o primeiro foi classificado como “islamofóbico”, não se viu a mesma reação em relação ao segundo. Se um motivou o uso de símbolos muçulmanos, como o véu, para manifestar a sua solidariedade com as vítimas, a sorte das segundas, ainda que em maior número, não provocaram a mesma reação.
Em resposta a estas críticas, outros procuram desmontar “teorias da conspiração” contra os cristãos. Consideram normal que os cristãos sejam os mais perseguidos dado que são em maior número. Cruzes e símbolos católicos já existem em demasia nas sociedades ocidentais, pelo que devem ser expurgadas das manifestações. Os judeus, ocupam o terceiro lugar do “ranking” dos mais perseguidos logo atrás dos muçulmanos e depois dos cristãos. Dado o seu número total, proporcionalmente, são os mais perseguidos no mundo. A estatística pode ser a ciência de torturar números até eles dizerem o que se quer...
Há ainda outro argumento extraordinário. Tem de se verificar se o que é contabilizado como perseguição aos cristãos se trata verdadeiramente de uma perseguição religiosa. É o caso do conflito entre muçulmanos e cristãos na Nigéria: é lido, não como o confronto de credos diferentes, mas como o conflito entre pastores, muçulmanos, e os proprietários das terras, cristãos.
Na verdade, não há perseguições religiosas “quimicamente puras”. Envolvem sempre outros interesses. Até a morte de Jesus, para além das questões religiosas, teve razões políticas.
Na génese do cristianismo está, pois, a perseguição. O seu fundador foi assassinado. Os seus discípulos foram perseguidos e neles se cumpriram as palavras de Jesus na Última Ceia: “Lembrai-vos da palavra que vos disse: o servo não é mais que o seu senhor. Se me perseguiram a mim, também vos hão-de perseguir a vós” (Jo. 15, 20). Que disse, ainda, aos seus discípulos para se alegrarem quando forem perseguidos. “Ai de vós, quando todos disserem bem de vós!” (Lc. 6, 26)
A grande desgraça da Igreja foi converter-se em religião de Estado. O ambiente de cristandade, a situação de privilégio, o controlo da sociedade, ainda que pareça ser mais benéfica para os cristãos do que a perseguição, é um perigo com séculos. Não havendo cuidado, acaba por descafeinar-se o seguimento de Jesus Cristo e promover-se uma religiosidade que se acomoda às tradições, sem se questionar nem questionar o mundo.
Esta situação é muito mais destruidora da Igreja do que a perseguição declarada. Porque, embora dando liberdade aos crentes, pode adormecer a sua radicalidade e permite outro tipo de ataques bem mais insidiosos e arrasadores.

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