Entrevista ao eurodeputado Ivan Garcia del Blanco

"Queremos impedir que cada local de trabalho seja um big brother", defende eurodeputado espanhol

Publicado por António G. Rodrigues em Qui, 2022-05-12 11:11

Mensageiro de Bragança: Qual o objetivo desta iniciativa?
Ivan Garcia del Blanco:
Queremos sublinhar a importância de cooperação na Península Ibérica entre Portugal e Espanha e assinalar que a digitalização e a generalização deste tipo de ferramentas por todo o território pressupõe uma oportunidade para locais onde é mais complicado. Quando falamos de outro tipo de indústria que se vai deslocalizando ao longo do tempo, temos a oportunidade de criar pequenos pólos que podem ir crescendo, especializados em tecnologia, e são uma oportunidade imensa de criar impulso às povoações e recuperar atividade económica. Isto já está a acontecer em Bragança, por exemplo.
Está a ser criado um pequeno pólo e a atrair empresas. Queremos que isto se generalize. Com cooperação transfronteiriça, o fenómeno multiplica-se.
Por outro lado, a nossa obrigação é dar conta do que está a ocorrer ao nível europeu em termos de regulamentação.

MB.: Que novidades estão a aparecer nesta área em termos de regulação?
IGB.:
A União Europeia está a renovar todo o seu pacote regulatório no âmbito digital. Onde havia normas está a renová-las e onde não as havia está a criá-las. E isso afeta todos os campos. Estamos conscientes que a nova concorrência a nível global vai produzir-se no âmbito do digital. Isso significa que temos de ser mais competitivos e ter normas que protejam o investimento e impulsionem esse investimento e o desenvolvimento científico e, ao mesmo tempo, que protejam os direitos fundamentais dos cidadãos. Estamos a falar de ferramentas que acarretam muitas potencialidades mas também muitos riscos.
Temos de proteger-nos da ciberdelinquência mas, também, de outras potências estrangeiras que se podem imiscuir nos nossos processos democráticos.

MB.: Falou-se de ferramentas de reconhecimento pessoal, de emoções, usadas no local de trabalho. De que forma é que isso pode afetar os cidadãos?
IGB.:
Queremos impedir que cada local de trabalho seja um big brother. Que exista o direito à intimidade e à proteção da intimidade no local de trabalho, ao descanso e, até, ao direito de não estar de bom humor num determinado dia. Hoje há ferramentas que conseguem medir os estados de ânimo. Isto é um perigo e está a acontecer em algumas sociedades não democráticas e queremos impedir que ocorra em sociedades democráticas como a nossa e, para isso, temos de regular esses processos.

MB.: Outro aspeto de que se falou foi das grandes empresas de dados, como o Google e o Facebook, e da dificuldade em obrigá-las a repartir os seus lucros com aqueles que explorar... Como se faz isso?  
IGB.:
Há duas vertentes. A primeira é fazer com que volte a haver uma verdadeira concorrência nos mercados em que são praticamente dominantes. Para isso aprovaram-se normas que lhes impõem obrigações importantes pelas suas posições de privilégio e tentam que não capitalizem essas posições dominantes no mercado. Outra parte tem a ver com uma fiscalidade mais justa, que tem de começar por obrigações de transparência.
Há pouco tempo aprovámos uma norma que obriga estes gigantes multinacionais a darem-nos informação básica de quanto ganham na EU, quantos trabalhadores têm, quantas filiais, o que pagam em cada país, de forma a termos as ferramentas suficientes para nos adaptarmos a que contribuam à sustentabilidade do modelo social europeu, com o qual lucram todos os dias.
A UE continua a ser o local mais próspero da terra, o local onde toda a gente quer estar, e tem um modelo social que implica que, se ganhas aqui, também tens de contribuir para a sustentabilidade e não impedir que os mais pequenos possam aceder ao teu mercado.

MB.: Um dos problemas coloca-se com a comunicação social, cujas notícias são exploradas comercialmente por esses gigantes, sem contrapartidas. Na Austrália essas empresas foram taxadas. Na Europa também se pensa nisso?
IGB.:
Aqui aprovou-se uma norma, em 2019, que deveria estar já implementada na legislação nacional. Prevê que exista uma obrigação destes operadores de compensar aos emissores de notícias.
Prevê-se um modelo misto, em que estas empresas podem chegar a um acordo com os emissores de notícias ou através das entidades de gestão coletiva. Esta diretiva também prevê o direito de propriedade intelectual dos jornalistas, o que até agora não estava reconhecido.

MB.: Que outras novidades está o Parlamento Europeu a antecipar? Falou-se em carros sem condutor, por exemplo.
IGB.:
Aprovámos a lei de mercados digitais, a de serviços digitais, uma lei de uso de dados e agora vem a discussão da grande lei de dados europeia. Estamos a discutir uma nova lei de inteligência artificial e uma regulação de chips e microchips. Estamos a renovar todo o pacote legislativo europeu para regular cada um destes aspetos. Tentamos que haja uma espécie de equilíbrio entre proteção e controlo dos efeitos adversos que pode ter esta tecnologia e, ao mesmo tempo, não limitar o desenvolvimento da tecnologia. Às vezes, uma regulação demasiado excessiva pode tirar competitividade à Europa a nível mundial. Mas se conseguirmos encontrar um meio termo, como já fizemos no passado, este tipo de normas, que dão uma espécie de selo ético às empresas, pode significar valor acrescentado na concorrência internacional.
Dou o exemplo da regulação de proteção de dados que se aprovou há uns anos e que agora está a ser transposto praticamente por todas as empresas do mundo. Desde logo, porque tinham essa obrigação para operar no espaço Europeu. Mas, ao fazer essa adaptação, acabaram por associar toda a sua operação a esse tipo de comportamentos.
Outros locais que diziam que não iriam adotar esta regulação, que diziam que era muito pesada, estão a adotá-la agora. O estado da Califórnia (EUA) está a implementá-la.

MB.: Um dos problemas é que a tecnologia avança mais depressa do que a legislação. Como se previne isso?
IGB.:
É um dos desafios. Temos de mudar a nossa forma de pensar em muitos aspetos, incluindo o âmbito regulatório.
Tentamos fazer um pouco de futurologia e prever como serão as sociedades no futuro. Em segundo lugar, fazendo regulamentos que sejam mais flexíveis e não passem de moda passados poucos meses. Por isso defendo que tenhamos organismos de gestão legislativa, que sejam flexíveis e tenham capacidade de se adaptar às mudanças que o mercado tenha, sem necessidade de fazer uma nova lei todos os anos.
Não podemos é render-nos. Os europeus têm um modelo próprio e não é em vão que toda a gente quer viver aqui. Fala-se muito do sonho americano mas todos querem é morar na Europa, porque somos as sociedades mais justas e mais prósperas do mundo e isso tem a ver com o modelo social e de direito que temos de proteger.

MB.: Que sociedade antecipa o Parlamento Europeu dentro de cinco anos?
IGB.:
Espero que tenhamos uma regulação completa, que garanta os direitos fundamentais no âmbito digital. Atualmente fala-se da aprovação de uma carta dos direitos digitais fundamentais e, em segundo lugar, que tenhamos sociedades muito mais conscientes da realidade em que operamos. Que tenham mais conhecimento de todas estas mudanças e consigam adaptar-se a elas. E Governos que tenham adaptado a própria Administração Pública a esta realidade. Quando falamos num horizonte temporal de cinco anos falamos em mudanças que antes demoravam 50 anos a acontecer. Não somos capazes de sequer imaginar o que irá acontecer dentro de cinco anos. Por isso, temos o desafio de fazer legislações flexíveis e que não passem de moda em questões de um par de meses.

MB.: Um dos problemas que enfrentamos é ter legislação que fica obsoleta rapidamente. A tecnologia nunca evoluiu tão depressa como agora. Poderá ser um problema que a maioria dos governantes atuais não sejam nativos digitais?
IGB.:
Sim, pode ser um problema. Mas temos de romper brechas que temos na nossa sociedade e uma delas é a brecha geracional. E isso não afeta só os mais velhos mas, também, entre as grandes cidades e o resto dos territórios. Temos de ir solucionando isso. Não é preciso ser um especialista em informática. Mas compreender de que forma a implementação da tecnologia nos afeta de forma massiva e entender o que é preciso. Teremos de ter equipas multidisciplinares também nas administrações públicas. Não só técnicos, como engenheiros, mas especialistas em Direito que saibam do que falam quando toca à digitalização, gente que se dedique à Ética, filósofos, artistas... equipas mais integradas porque a digitalização vai mudar tanto as coisas que não vai afetar apenas as pessoas no âmbito digital mas a todos.

 

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