A opinião de ...

Nós e a Europa

Há poucas semanas, Portugal vestiu-se de luto e prestou a última homenagem a Eduardo Lourenço, “um poeta do pensamento”, nas palavras de Lídia Jorge, o maior ensaísta português do nosso tempo, um europeísta convicto que não se conformava com a desvalorização da Europa e da sua Cultura. Para o autor de Nós e a Europa ou as duas razões, a Cultura europeia, de difícil definição, é a “cultura das diferenças ao longo da sua História”. Cultura que é tanto de Platão como de Shakespeare, de Miguel Ângelo como de Bach, de Montaigne como de Mozart, de Picasso como de Camões.
Eduardo Lourenço pensou a Europa como Pessoa pensou a vida, “ a vivida e a sonhada”, e nessa dicotomia o heterodoxo pensador distinguia a Europa das catedrais, da Literatura, da Filosofia e da Ciência, da Europa dos conflitos, dos egoísmos, dos nacionalismos e do populismo. Uma Europa dual. Contradição europeia que se fez sentir recentemente, durante o processo negocial do orçamento plurianal e do Fundo de Recuperação e Resiliência. Dois Estados-membros, a Hungria e a Polónia, cujas democracias têm vindo a ser adulteradas, não se inibiram de exibir ao mundo dissensão em matéria de princípios: não queriam que o Estado de direito lhes condicionasse o acesso aos fundos. Esticaram o fio chantagista até embaterem na firmeza dos restantes países e da Presidente da Comissão Europeia. Angela Merkel, que até ao final do ano preside à União, foi determinante, conseguindo salvar-lhes a face sem fazer cedências e, assim, manter os 27 unidos, numa altura em que a União mais precisa de o ser e de o parecer. Menos um problema para Portugal, o país que se segue na presidência rotativa. A ver vamos se o dossiê Brexit também fica fechado. Dito por outras palavras, ainda não é certo que a União Europeia e o Reino Unido cheguem a acordo, embora o prolongamento das negociações indicie essa intenção. Certo é que, a 1 de janeiro de 2021, a Presidência Portuguesa vai deparar-se com a peculiar situação de uma União subtraída.
Ninguém ignora que Portugal vai assumir a presidência num contexto de grande incerteza e singularidade, no meio duma grave crise sanitária, económica e social, coincidindo com a saída do Reino Unido, facto inédito e de consequências imprevisíveis. Vai ter de combater em simultâneo a pandemia e a crise económica. Vai ter de gerir a distribuição da vacina contra a Covid-19 e de contribuir para que as verbas do Fundo de Recuperação e Resiliência cheguem onde fazem falta. E sem sequer poder prever se as reuniões serão presenciais ou digitais e muito menos se e quando se voltará à normalidade. Como reconheceu Charles Michel, presidente do Conselho, a presidência portuguesa terá lugar num “momento histórico” e “crucial” para a Europa, porque deverá liderar a “UE para uma era pós-Covid”.
Apesar das dificuldades inerentes a uma pandemia com efeitos devastadores na economia, Portugal tem a seu favor experiência, capacidade de concretização, credibilidade e prestígio a nível europeu. E, não despiciendo, passou com distinção nas três vezes em que anteriormente assumiu idênticas responsabilidades: 1992, 2000 e 2007. Foi por iniciativa de Portugal que, em 2000, se realizaram as primeiras Cimeira UE/Índia e UE/África. E, não por acaso, só sete anos depois se realizou a segunda cimeira UE/África, mais uma vez durante a Presidência Portuguesa. Na mesma altura, Portugal contribuiu decisivamente para desbloquear o impasse institucional, legando à Europa o Tratado de Lisboa. E, em 2021, Portugal vai deixar, uma vez mais, a sua marca de excelência.

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