A opinião de ...

Liliputinar

Não devemos ter medo das palavras: Putin começou simpático e acabou ditador. Assim posso resumir conversa de há dias com o embaixador João Diogo Nunes Barata, que nos representou em Moscovo entre 2002 e 2004.
Putin é um ressabiado: acaba o curso de Direito na cidade natal, São Petersburgo, e entra no KGB, cujos herdeiros dominam, hoje, a Federação Russa. Os chefes não lhe reconhecem grandes qualidades, sendo destinado, pois, à tranquila Dresden, na República Democrática Alemã. Um espião de primeira viria para o Ocidente.
Antes dos seus 40 anos, dissolve-se a União Soviética (1991), e um sonho que o inspira a partir do mandato presidencial de 2004-2008: reprimir dentro, conquistar fora. A NATO (em coma, diria Macron) não percebeu; tomada a Crimeia (2014), o Ocidente nem buliu. Convinha, sobretudo, à Alemanha de Merckel, essa locomotiva europeia alimentada pela energia russa. Agora, com gás em reserva para o próximo Inverno, e as necessidades de petróleo em queda, não só sai afectada a economia russa (a par de outras sanções, cujos efeitos ainda mal se sentem), como se conclui isto, simples: Europa refém da energia e propaganda russas não é uma Europa independente. A partir daqui, Putin inventou-se historiador para justificar o que poucos viam. No pretexto de desnazificar quem lhe fazia frente (um país dirigido por um judeu), mal informado (vergonha de espião), quis, como fizera na Crimeia, pisar Kiev em três dias. O sonho de 1991 começava a concretizar-se – ou isso parecia.
Eis a inspiração para, entre Março e Julho (em menos de quatro meses), compor o meu nono romance editado, Liliputine, que descreve momentos fortes da História europeia desde a morte de Estaline, em 1953 (Estaline é modelo de Putin, que não fala às crianças do acordo germano-soviético de 1939, para cada país devorar a sua parte na Polónia). Saliento duas invasões: em 1956, na Hungria; em 1968, já não só os tanques soviéticos, mas também outras forças do Pacto de Varsóvia, na Checoslováquia. O actual czar, liliputiano, tem outro modelo: Pedro, o Grande – que, todavia, media dois metros e três. Resumindo.
José de Arimateia e Maria de Jesus têm um filho, João Baptista, em 1956, e vivem as ilusões de uma Hungria livre. Arimateia participa no levantamento de Budapeste, conviva de Lukács Mária, que dera à luz um filho do embaixador soviético Yuri Andropov, e este rapta. Andropov será futuro secretário-geral do PCUS, na morte de Brejnev, em 1982. Milhares de vencidos são desterrados para várias regiões da União Soviética. Arimateia vive em Kaliningrado até Agosto de 1968: intérprete no exército que invade a Checoslováquia e põe fim à Primavera de Praga, salva uma adolescente, Hana, em cuja casa se refugia até 1971. Recusando contactar os comunistas portugueses no exílio, entra na vida de Miroslav, editor do realismo socialista europeu e latino-americano, e da empregada Krista, trazendo esta família para Lisboa.
Hana e João Baptista alimentam uma relação vigiada, suspensa entre 1979 e 1985, quando aquela acompanha Miroslav e Krista para Berlim Oriental – onde Lukács Mária lhe apresenta um espião soviético vindo de Dresden – e João Baptista faz espionagem (ou isso julga) ao serviço de Berlim Ocidental. Reencontram-se na Hungria e, em 1986, nasce Magda Baptista, hoje docente de Estudos Europeus, que organiza este romance-reportagem em 49 cenas muito cinematográficas.
O glorioso 1989 separa o casal: Hana entrega-se, de vez, ao espião de Dresden, nascendo Boris. Foge com os filhos para Moscovo. Os bons ofícios de Lukács Mária são recompensados com a visita do filho István, que não voltará a ver. João Baptista busca a filha, enquanto cicatriza a dor pelas capitais do Ocidente e, na pele de jornalista, visita a Roménia – sem encontrar Miroslav e Krista, aí desde 1985 – do ditador Ceausescu em fim de ciclo.
Abandonada, Hana entrega Magda ao pai João Baptista, diplomata em Roma (1992). Já, com a Revolução de Veludo, Miroslav e Krista regressam a Praga, onde Hana os visita, e sabe que o pai e mãe vivem em Moscovo. Cumprirá uma vingança, antes de, nas linhas finais, sofrer castigo. Sequestrada no silêncio, não acompanha o crescimento do filho, que encontra os verdadeiros avós, e se faz atirador de elite ao serviço do novo czar – Putin, seu pai –, cujo historial de vida é parcialmente referido, quando não imaginado.
João Baptista virara conselheiro em Moscovo; afastado desse cargo, regressa como administrador de empresas, fornecendo o palácio presidencial. Tarde percebemos que Lukács István, sósia de Putin, é o seu interlocutor: morto este, não se prossegue a mesma política? A invasão da Ucrânia obriga à fuga e a medidas solidárias que se impõem às democracias.
Liliputine funde As Viagens de Gulliver e sua ilha de Liliput com Putin(e), nome donde deriva ‘liliputinar’, cujos presente do conjuntivo e imperativo significam: «reduza Putin à sua pequenez ou insignificância». Olha-se ao complexo estalinista de quem, no seu metro e sessenta e oito, se sonha um novo Pedro, o Grande. No seu palácio de medos, repressivo da liberdade de expressão, e do qual fogem os que podem (um milhão, um milhão e meio), anuncia-se o estertor de um genocida, quem dera o regresso de um novo Gorbatchov. É exigência das democracias morais que se queiram independentes em todos os domínios defender os nossos valores.

Edição
3926

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