A opinião de ...

Abuso do poder... nas misericórdias!

A nossa imprensa tem referido abusos na elaboração das listas para aplicação da vacina contra/covid-19; a título de exemplo, mencionou os seguintes casos: um responsável pela Delegação do INEM, para evitar o desperdício de vacinas que de outro modo iriam parar ao lixo, decidiu vacinar os empregados de uma pastelaria sita paredes-meias com o edifício daquela Delegação; directores, assessores e outros quadros superiores do INEM que não contactam com doentes também foram vacinados; profissionais da Segurança Social que não contactam com doentes; órgãos sociais responsáveis por lares de Misericórdias e IPSS integraram as listas de vacinação já que estes responsáveis, como os outros colaboradores, estão diariamente em contacto com os utentes de lares que têm sido as principais “vítimas” da covid-19 em quase todo o País. Perante estas situações, vários juristas têm afirmado, mas sem abalizar pessoas e situações, que estamos perante a prática de crimes, nomeadamente, do crime de abuso de poder, (art. 382º) crime peculato de uso, (art.376º) e crime de recebimento indevido de vantagem, (372º), crimes previstos e punidos no nosso código penal – no capítulo “dos crimes cometidos no exercício de funções públicas”.
O crime de abuso de poder está directamente relacionado com os poderes da autoridade pública que excede os justos limites do poder no exercício das suas funções e assim, “o poder fica fora da competência da autoridade pública, ou porque esta a não tem no caso concreto, ou tendo-a, foi além ou excedeu a que tinha” - (dicionário jurídico de Joáo Melo Franco). A competência da autoridade fica comprometida e é ilegítima como também acontece na lei civil e se considera “ílegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exerce um direito excedendo certos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito”- (artigo 334º CC). Apurar os factos subjacentes a estes conceitos jurídicos é tarefa de muito complexa interpretação e aplicação pelos tribunais, talvez a razão de haver poucas condenações pela prática do crime de abuso do poder.
Poderão os responsáveis pelas IPSS ou os órgãos sociais das Misericórdias ser acusados de cometer este crime de abuso de poder previsto no artigo 372º do C.Penal? Esta muito controversa questão foi apreciada e decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que em acórdão de Fevereiro/2020, fixou que os “profissionais e dirigentes das IPSS e das Misericórdias não podiam ser incluídos na categoria de funcionários ou servidores do Estado”; desta forma, nunca estes servidores (responsáveis) das IPSS ou Misericórdias podiam vir a ser acusados ou condenados pela prática do “crime de abuso do poder”.
Também quanto ao crime de peculato de uso, e segundo a sua definição no art. 376º CP, este crime só pode ser cometido por “funcionário público que fizer uso ou permitir outra pessoa que o faça para fins alheios a que se destina de bens imóveis, veículos, de coisas móveis, de animais que lhe forem entregues....”. Igualmente o crime de “recebimento indevido de vantagem” -372º CP – só se aplica a quem agir na qualidade de funcionário do Estado. E, compreende-se que assim seja; as vacinas contra covid-19 são propriedade do Estado e é ao Estado que incube fazer a sua distribuição e aplicação. Estes crimes estão previstos no capítulo “dos crimes cometidos no exercício de funções públicas” e consequentemente só os servidores do Estado poderão ser acusados e eventualmente condenados pela prática destes crimes.
Um Presidente de Câmara foi “acusado” pela imprensa de se ter aproveitado do facto de ser também Presidente de uma IPSS, onde se deslocava todos os dias, e nesta qualidade incluir duas pessoas na lista de vacinação dos utentes e colaboradores dessa IPSS. Quando as duas cozinheiras da instituição foram hospitalizadas e outros colaboradores ficaram de quarentena, o dito Presidente apelou ao voluntariado e ninguém compareceu; quando a roupa se acumulava na lavandaria, voltou a apelar ao voluntariado. Duas voluntárias do concelho apresentaram-se na cozinha e durante trinta dias nenhum utente dessa IPSS passou fome; estiveram na lavandaria a separar montões de roupa suja para meter nas máquinas e todos os utentes tiveram o seu lençol limpo e camisa engomada. Verificando-se estes pressupostos, alguém de bom senso deixaria de incluir estas duas sacrificadas mulheres na lista de vacinação do pessoal dessa IPSS!... mesmo sendo a mulher e a filha desse presidente da IPSS!...
Existe um princípio de direito (romano) que justifica a responsabilidade pelas consequências do exercício de direitos: - “ubi comoda, ibi incomoda”, ou seja, quem recebe as vantagens do exercício de um direito que suporte também as suas desvantagens (consequências) do seu exercício. Porque não interpretar este princípio “ao contrário”? E, assim seria “ubi incomoda ibi comoda”; aquele princípio, numa interpretação popular que todos entendem, significa “quem come a carne que lhe rilhe os ossos” e, dito ao contrário, passa também a ser de toda a justiça: “quem tiver de rilhar os ossos também deve comer a carne”.
Amigo leitor,é necessário aprender a distinguir a “árvore da floresta” e compreender o alcance do termo “indevido” aplicado a certas pessoas incluídas na lista de vacinação contra o maldito covid-19 que atacou toda a população, mas de forma muito agressiva os utentes e colaboradores de todas as misericórdias.

Nota: Presidente do Conselho Fiscal da Santa Casa da Misericórdia de Bragança. Não vacinado

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3821

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