A opinião de ...

Reinventar a peregrinação no século XXI

Há muitos séculos, S. Agostinho procurou a felicidade fora dele. Mas só a encontrou verdadeiramente quando entrou dentro de si e, aí, foi surpreendido por Deus, que o aguardava. Nas Confissões ele exclama: “Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! E eis que estavas dentro de mim e eu fora” (Livro X, XXVVI, 38).Tal como experimentou S. Agostinho no século IV, a felicidade não é uma conquista. É o resultado de um caminho interior que leva a pessoa a descobrir os seus talentos, sendo chamada a desenvolvê-los cada vez mais. Esse percurso permite também identificar feridas do passado e curá-las. É uma experiência que permite encontrar a realização, a paz e a felicidade. Para o cristão, essa peregrinação interior é o caminho que conduz à santidade.
No passado dia 29 de abril o cardeal D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, apelou a essa peregrinação interior para colmatar a impossibilidade de peregrinar à Cova da Iria, como o fazem habitualmente milhares de peregrinos. Pela primeira vez em mais de cem anos, este ano a Cova da Iria não se encheu de fiéis para celebrar o 13 de Maio.
D. António Marto esclareceu que “não se peregrina só a pé e com os pés, ou com a deslocação física”. Segundo o cardeal, “também se peregrina com a mente e com o coração, quer dizer: fazendo uma peregrinação interior na busca de luz e de verdade, de regeneração e de cura, de conforto espiritual e de paz, no encontro do peregrino consigo mesmo, com a Mãe celeste e com o mistério de Deus, para continuar a caminhar com a força da esperança!”.
Esta é a verdadeira peregrinação que todo o ser humano é chamado a fazer. A peregrinação a pé pode, ou não, criar o ambiente propício para este encontro consigo mesmo e com Deus, caso seja crente. Percorrer dezenas, centenas ou até milhares de quilómetros a pé, como acontecia nas peregrinações medievais à Terra Santa, poderá ser muito difícil. Mas fazer uma peregrinação interior é ainda mais duro.
Thomas Merton (1915-1968), monge trapista, dizia que “a distância mais longa é aquela que vai da cabeça ao coração”. É difícil percorrê-la, sobretudo quando se vive imerso na agitação e no ruído do dia-a-dia. Este é um mundo em que se promove, sobretudo, a distração, a busca do prazer fora de si, e se investe pouco na interioridade, no desenvolvimento pessoal e humano, na espiritualidade. É um mundo que não está habituado a fazer silêncio, a entrar dentro de si próprio e a percorrer caminhos interiores.
O Santuário de Fátima, no seu sítio da Internet, propõe aos peregrinos “uma peregrinação interior, pelo coração, rumo ao encontro com Deus no santuário do próprio íntimo, onde Ele está presente”. Esta é uma proposta coerente com o contexto de pandemia que se vive. Mesmo quando a Covid-19 for vencida, Fátima deverá continuar a promover esta forma de peregrinar. Deverá despertar nos seus peregrinos o gosto pela aventura em viagens interiores e treiná-los para, no regresso às suas casas e profissões, continuarem a procurar tempos e ambientes para prosseguirem essa peregrinação. Dessa forma, Fátima estará a ajudar a Igreja a reinventar-se em consonância com as necessidades da humanidade no século XXI e numa maior fidelidade à proposta evangélica.

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