Nordeste Transmontano

Bragança acolheu o mais participado congresso de comunicadores de ciência dos últimos anos

Publicado por António G. Rodrigues em Qui, 2023-05-11 15:33

Contar histórias reais, de pessoas reais, é uma das formas mais eficientes de comunicar, mesmo que o tema em causa seja de complexidade técnica, como acontece regularmente na ciência.

Esta foi uma das lições vincadas no congresso anual da rede SciComPt, que juntou em Bragança, na semana passada, mais de 200 investigadores e comunicadores em ciência, tornando esta na edição mais participada dos últimos anos.

“No ano passado, nos Açores, tivemos cerca de 160 pessoas.
Vêm de áreas muito distintas do conhecimento e das artes, e que vêm aqui na perspetiva de partilha e é sempre isso que levamos dos congressos. Quisemos trazer a perspetiva de juntar a ciência com a arte, com as humanidades. E também à igualdade, à equidade, à diversidade”, referiu ao Mensageiro Vera Novais, presidente da Associação SciComPt, organizadora do congresso, que no próximo ano decorrerá em Braga.

“Uma das coisas que tentámos com este congresso em Bragança foi aproveitar o que Bragança tem para escolhermos o tema, Transformar. Tem tudo a ver com esta região. E sentimos dentro da comunidade SciCom que precisamos um pouco de transformação. Os tempos estão a mudar na comunicação de ciência e na comunicação em geral. Precisamos de partir do que já fizemos e refinar os nossos métodos. Bragança representa transformação e transpor fronteiras, a transculturalidade, também. Era o local ideal para fazermos aqui esta junção e misturarmos as duas coisas”, explicou Vera Novais.

Parceiro deste evento foi, desde a primeira hora, o Centro Ciência Viva de Bragança.
Ivone Fachada, a responsável, frisou que, para a região, o evento “é muito relevante”. “Por um lado, queremos transmitir aos comunicadores de ciência e ao resto do país as práticas que executamos aqui, no nosso território, com as nossas peculiaridades e particularidades, que, apesar de as pessoas acharem que Bragança é um bocadinho longe, nós achamos que é uma terra de oportunidades. E, por outro lado, aprender com estes colegas. Temos pessoas de diferentes profissões, como jornalistas de ciência, pessoas que trabalham em gabinetes de comunicação de ciência, os próprios cientistas, professores, pessoas que são das artes e das humanidades. Esta troca de experiências e de interceções de conhecimento é o que se pretende promover.
Um dos objetivos é dar visibilidade ao trabalho que é desenvolvido no Centro Ciência Viva de Bragança e no Instituto Politécnico. Produz a ciência que nós comunicamos”, frisou.

“Os cientistas têm uma linguagem própria, muito rigorosa, que tem de se manter assim para manter elevados padrões de qualidade, mas é preciso que haja alguém que traduza. E os cientistas, muitas vezes, nem têm tempo de fazer esse trabalho de comunicação. E o nosso papel enquanto comunicadores é sermos facilitadores e, principalmente, a investigadores em início de carreira, podemos ajudá-los a comunicar melhor”, disse ainda Ivone Fachada.

Os temas de ciência são dos que despertam mais interesse nos jornais, como constata diariamente Vera Novais, que é, também, jornalista do Observador.

“Há temas de ciência que têm mais procura. Tudo o que é sobre o Espaço, pelo deslumbre da incógnita, e tudo o que tem a ver com saúde. Os artigos sobre cancro, sobre a pandemia, porque são coisas que dizem muito respeito às pessoas. Toca-lhes muito próximo e esses artigos também têm interesse”, explica.

Uma das estratégias passa pelo envolvimento dos mais novos. “O número de visitantes aos museus e centros de ciência também tem crescido, e muito por força das crianças, que primeiro vão com a escola e depois levam os pais. As crianças são muito o motor de transformação dos pais. Um dos exemplos mais claros é o da reciclagem. Quanto mais chegarmos às crianças, mais elas influenciam os pais.

Depois temos de fazer um trabalho maior para chegarmos aos adultos. Em Bragança tentámos fazer isso com os artigos que saíram no Mensageiro, para tentar chegarmos a um público a quem normalmente não chegamos, para contar histórias de ciência a todas as pessoas”, precisou.

Um cidadão-astronauta de raízes transmontanas

Um dos comunicadores presentes foi Pedro José-Marcellino, lisboeta com raízes transmontanas (“a família do lado do meu avô é de Macedo e do lado da minha mãe é toda do Alto Tâmega”, contou ao Mensageiro), o primeiro português cidadão-astronauta. Em 2022 passou a ser um dos poucos portugueses que participaram em missões numa estação análoga a Marte, cobrindo a experiência diariamente no Observador.

“Penso que o mais importante é sempre falar como a ciência afeta a vida das pessoas no dia a dia. Tudo o que acontece na ciência acontece por inerência de nós e acontece para nós. Tem consequências naquilo que nós fazemos. Podemos, por exemplo, falar de quão inútil é tentar ir a Marte. Mas, na realidade, usamos cerca de duas mil tecnologias que foram desenvolvidas para ir à Lua. Hoje, na Terra. Portanto, acho que é importante fazer entender a forma como a ciência afeta a nossa vida no dia a dia. As coisas que fazemos, as coisas que queremos fazer, os sonhos que temos, porque a tecnologia, a ciência, a engenharia, afetam a nossa vida diária, o nosso bem estar, a nossa qualidade de vida. Portanto, é importante conseguir fazer essa ponte de informação.

O segundo elemento, penso que é a questão das histórias, das narrativas. É importante falar das pessoas como seres humanos.

Nós reagimos muito mais rapidamente e de forma muito mais aberta a informação sobre outras pessoas, temos muito mais curiosidade inerente em informação sobre outras pessoas do que temos relativamente a informação abstrata.

Isso tem a ver com o nosso código genético. Estamos codificados para nos interessarmos pelo grupo social a que pertencermos. Por isso é que temos curiosidade de ver o que os outros estão a fazer, de entender o que se passa na vida deles. Entrar por aí parece-me uma forma muito adequada, muito boa, de tentar trazer o conhecimento científico para a vida das pessoas”, explicou.

Atualmente é realizar e produtor de documentários, pelo que conta histórias usando o vídeo, enfrentando, agora, a concorrência das novas plataformas digitais, como as redes sociais, mas que não vê como uma ameaça, antes uma oportunidade de atingir outros públicos.

“Há estudos que já apontam mudanças nas sinapses do cérebro na forma como nós acumulamos informação, na falta de paciência que se está a tornar [evidente]... não sei se não se está já a codificar geneticamente. Sabemos que o trauma pode ser codificado geneticamente numa só geração. Não sabemos se este tipo de sinapses que estão a ser alteradas têm o mesmo tipo de impacto.

Agora, sabemos que ao longo dos últimos 120 anos, desde que começámos a ter tecnologias de informação, ou até à imprensa do Gutemberg. Depois veio o cinema, que ia destruir os livros e o conhecimento formal, os jornais ou a rádio. Depois veio a televisão. A seguir os videoclips, sobre os quais se dizia que iam destruir a rádio (a radiostar). Ou seja, todas as vezes em que houve uma transição de tecnologia, esta conversa existiu. Há, aqui, uma série de fatores, económicos, políticos, sociais, que são importantes. E alguns deles têm de ser estudados e podem ter consequências na forma de aquisição de conhecimento dos mais jovens, na manutenção da democracia e na forma como ela funciona hoje em dia. Ultimamente tem-se falado imenso no ChatGPT, que é um nível mais acima. Aí já vejo uma necessidade de regulamentação, porque estamos a entrar num patamar um pouco perigoso quando conseguimos criar vídeos de alguém a dizer uma coisa [que efetivamente não disse]. Agora, o que é que isso causa relativamente à forma como comunicamos, não sei. Na realidade, posso passar dois ou três anos a fazer um documentário para transmitir uma ideia e há pessoas, por exemplo influencers do tik tok, que têm cem mil seguidores e que fazem dentadinhas de informação, que passam de uma forma muito mais eficiente do que eu jamais serei capaz de passar, uma mensagem eficiente que chegará a uma audiência muitíssimo maior. Não é que uma invalide a outra”, concluiu.

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