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A Sociedade V – A vida na Aldeia

O comércio era quase inexistente, na aldeia. Em quase todas havia uma taberna, logo que possível convertida em café, que coexistia com um pequeno comércio. Ali se podia comprar arroz e massa e demais produtos alimentares de primeira necessidade que se conservassem por si, bacalhau, latas de conserva, açúcar massa e não muito mais. O abastecimento era feito nas feiras e na vila, onde se ia raramente. Uma grande revolução, para estes comércios, foi a electricidade e sobretudo o aparecimento da televisão. Comprar a televisão era um enorme investimento para as pequenas economias, mas os comércios logo procuraram os seus benefícios: atrair clientes consumidores. Ao contrário do que por vezes se ouve, o transmontano tem uma natureza de inovação arreigada.
Não havendo qualquer transporte público ou privado, a que se pudesse recorrer, e sendo indispensável a ida à feira para vender produtos, comprar outros e, enfim, para todo o social inerente, as deslocações eram feitas de carroça, a pé em burros ou machos, conforme ao peso da carga e a distância. Nas feiras de gado a viagem podia facilmente demorar meio dia para levar as ovelhas ou vacas. Era frequente ver, de madrugada, pequenos grupos de pessoas com animais (galinhas, perús e coelhos em cabazes) ou mesmo porcos com uma perna atada a uma corda, em marcha pela berma das estradas. O regresso dava-se depois do almoço, feito o negócio e as compras para casa. Quem tinha a sorte, rara, de ter na aldeia alguém com uma carrinha, podia ter a sorte do transporte, no regresso.
A deslocação a pé era a norma, por muito estranho que seja para a sociedade de hoje. Recordo como exemplo a Sra A., que foi empregada num restaurante em Macedo de Cavaleiros e vivia numa aldeia a 4 Km, que toda a vida fez o percurso a pé, de manhã e à noite, depois das oito horas, já noite escura. Era a regra.
O abastecimento de água era feito numa fonte pública. Uma ou duas vezes por dia, ia-se à fonte. Uma bilha de barro, um cântaro ou uma remeia (metade do volume, 6 litros) conforme era um adulto ou uma criança. A qualidade dessa água era frequentemente duvidosa ou mesmo muito duvidosa. A fonte onde nos abastecíamos distava uns 5 metros do ribeiro da aldeia, o que explicava as frequentes gastroenterites, sobretudo de verão. Essa água transportada à mão ou, mais raramente, na carroça com vários volumes, se era distante de casa, teria de servir para beber e todos os usos domésticos.
Até meados da década de 70, pelo menos todas as crianças da instrução primária estudavam ainda na escola da freguesia. Isso facilitava a manutenção de uma coesão social. Coexistiam pais, avós e crianças. Só a desertificação levou a encerrar centenas de escolas por já não haver um número suficiente de crianças para as manter em funcionamento (já em meados dos anos 70). O seu encerramento contribuiu para uma disrupção social e para a procura de uma habitação na vila, ou mais longe ainda, fora da região. Naturalmente que todas as famílias procuram uma harmonia de habitação e trabalho, conjuntamente com os seus familiares próximos até que se chegue a uma alteração disruptiva. No caso presente foi a emigração, que reduziu fortemente a população na aldeia, o transporte diário das crianças para a sede de concelho, o isolamento e sobretudo, as dificílimas condições de vida. Recordo rapazes da minha idade andarem descalços, mesmo com frio ou em dias de chuva e frequentemente com roupa insuficiente.
Um outro equipamento que a casa necessitava embora poucas o tivessem, pelo seu custo, era o forno para cozer o pão. Implicava a existência da masseira, uma “caixa” de paredes altas, com uns 50cm de altura, inclinadas de dentro para fora, e que se destinava a amassar o pão, as bolas doces e o folar, na Páscoa. Faziam parte importante da economia familiar. Quase sempre havia cedência desta instalação a outras pessoas, normalmente sem retribuição do seu uso: o pão era o bem mais necessário. Ocasionalmente havia quem cozesse para venda de pão, uso que nas décadas seguintes se generalizou. (continua)

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