A opinião de ...

Fim de regime ou regeneração democrática em Portugal?

Os últimos acontecimentos - prisão de altos responsáveis pelos «vistos-gold» e do ex-primeiro-ministro José Sócrates -, levantam a questão da sobrevivência da democracia num país culturalmente corrupto, amante do desenrasca-te, sem olhar a meios.
Os portugueses parecem, por natureza, antidemocráticos e ausentes de uma perspectiva ética, universalista e justa da democracia. E, neste estado, só podem dar origem a um regime que é uma mescla de duas ordens sociais: uma ditadura plutocrática (governo de ricos), oligárquica (governo de dirigentes inamovíveis e inimputáveis) e neputista (proteção dos amigos e servidores) e uma democracia de fachada, cujo exercício se limita à eleição de dirigentes políticos que, depois, põem e dispõem a seu bel-prazer da administração pública, do país e do seu povo e tentam enriquecer sem escrúpulos.
A situação política que vivemos hoje, em Portugal, é já a mistura destas duas perspectivas e pode-se olhar para os factos que citei no início deste artigo numa perspectiva optimista e numa perspectiva pessimista. Na optimista, vemos neles o início da regeneração do regime pela via da justiça e do direito, pais da democracia e da ética. Na perspectiva pessimista, olhamos para os factos como a evidência de todos os defeitos do regime e como a evidência do seu fim, na ação de um ex-primeiro-ministro.
Por mais voluntaristas e benevolentes que queiramos ser para com as classes política e dirigente, é difícil ver na situação em que vivemos o início da regeneração da democracia. Isto porque, apesar dos esforços dos agentes da justiça, eles são bloqueados por leis neputistas e protectoras de grandes áreas de inimputabilidade dos agentes políticos, as quais impedem os juízes de uma acção correctiva em profundidade.
Este bloqueamento operado pela classe política através de leis e regulamentos injustos, corruptos e auto-favorecedores perpetua uma administração pré-burocrática e caudilhista. O regime de inimputabilidade generalizada em que vive a nossa classe política e dirigente permite que, por exemplo, ela própria se tenha autoaumentado recentemente nos seus subsídios e ajudas de custo em 90%. As dificuldades colocadas ao levantamento do sigilo bancário é outra área opaca e chafurdenta da nossa democracia. Mas é sobretudo nos privilégios legais em torno da impunidade que a classe política manieta a justiça.
Não temos em Portugal um problema de justiça mas sim um problema político e ético que manieta a justiça. Percebi-o há quinze anos quando numa aula, com cem alunos, um me perguntou o que é que eu achava de os políticos se servirem dos lugares para se autogovernarem. Percebendo a capciosidade da pergunta, devolvi-a ao plenário e, depois da discussão, pedi aos cem alunos que escrevessem, cada um, num bocado de papel, sigilosamente, se sim ou se não, confiante numa resposta massiva de «nãos». Enganei-me: obtive uma resposta massiva de «sims» (97 contra três «nãos») e um deles até escreveu: «sim, porque é o sistema que está instituído e é tolo se não aproveita».
A minha vida mudou radicalmente desde esse dia tal foi a minha desilusão e perplexidade mas percebi o rumo que estávamos a seguir. Hoje, sofremos-lhe as consequências. Pensar o futuro é já o desafio urgente.

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3501

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