Igreja - Entrevista a D. José Cordeiro

“A vida é feita de infinitos recomeços e, ao recomeçar, encaro com fé humilde”

Publicado por António G. Rodrigues em Qui, 2022-01-06 14:53

Prestes a assumir um novo desafio como Arcebispo de Braga, D. José Cordeiro, que durante dez anos foi bispo da diocese de Bragança-Miranda, faz, em exclusivo ao Mensageiro, um balanço daquilo que foi esta década.

Mensageiro de Bragança: Cumpriram-se dez anos desde que tomou posse como bispo de Bragança-Miranda. Que balanço faz deste ministério episcopal?
D. José Cordeiro:
Antes de mais, uma atitude de gratidão e de memória agradecida por estes dez anos vividos no seio da nossa querida Diocese. Sou de Bragança-Miranda, cresci aqui, sou deste presbitério. É verdade, que fui enviado para Roma, onde vivi 12 anos e fui chamado a este ministério episcopal em 2011. A resposta que dei ao pedido do Papa Bento XVI foi: “se sou necessário ao meu povo não recuso o trabalho”. Foi nessa atitude de dedicação, de humildade, de (re)novação desta Igreja local que procurei viver, esforçando-me por fazer o melhor que podia, que sabia e que tinha ao meu alcance.
 
MB.: Na altura foi o bispo mais novo em Portugal. O que sentiu quando foi convocado para esta missão?
DJC.:
Senti uma enorme responsabilidade porque este serviço na Igreja traz consigo um grande compromisso. Mas também senti enorme confiança e coragem em Cristo, o fundamento da fé.
Não é fácil ser bispo na própria Igreja onde crescemos, onde temos relações e convívios da infância, da adolescência, da juventude, mas é possível, confiando mais em Deus do que em nós próprios e como dizia Fernando Pessoa: “a espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias”.
Foi nessa atitude de descoberta e novidade que procurei viver.  Claro que a relação e a cultura do encontro não dependem só de uma pessoa, mas é encontro mútuo e, em Igreja é ato sinodal. Hoje, que se redescobre o rosto sinodal da Igreja, vejo que nós procurámos vivê-lo ao longo destes dez anos, sendo uma renovação na continuidade.
A própria criação das Unidades Pastorais e a reorganização pastoral era algo que vinha sendo amadurecido desde o ano 2000 e que, depois, foi possível incrementar. Mas ainda há muito por fazer…

 MB.: Foi a primeira experiência com Unidades Pastorais em Portugal?
DJC.:
Não. Talvez, ao nível de uma Diocese inteira, sim. Algumas dioceses já tinham as Unidades Pastorais e, agora, felizmente há outras que já as implementaram.
Quinze dias depois do início do ministério fizemos uma Assembleia do Clero e ali foram traçados três caminhos dados como prioritários: a formação inicial e permanente do clero, a formação inicial e permanente dos leigos e a reorganização pastoral. Nesse sentido, procurámos que tudo o que já era feito - e tudo o que foi posteriormente inovado e implementado - procurasse seguir essa fidelidade assumida por todos. Temos características próprias que nos distinguem, como o despovoamento e a escassez de vocações, ao mesmo tempo, temos também sinais enormes de esperança e da presença de Deus, que nos acompanha sempre.
Não se trata tanto de elaborar um plano pastoral eficaz, com objetivos claros, mas sim reforçar o dom da vida vivida. Damos profundas graças a Deus por tudo quanto foi possível viver, construir e realizar. A pastoral é a arte do possível.
Disse na mensagem de ação de graças à Diocese, citando S. Francisco de Assis: “Irmãos, comecemos a servir o Senhor Deus, porque até agora pouco ou nada fizemos”. Foi nesse horizonte de Deus surpresa e de ver tudo como dom da graça de Deus que me procurei situar, porque a vida é feita de infinitos recomeços e esta também é uma etapa para recomeçar na Esperança.

“Não é fácil ser bispo na própria Igreja onde crescemos, onde temos relações de convívio da infância e juventude”
 
MB.: O que ficou por fazer?
DJC.:
Há muito para fazer. O serviço episcopal é vivido no sentido da Igreja, não é um projeto pessoal, mas é um processo eclesial. Há muitos processos em curso. Como o Papa Francisco tem dito muitas vezes, isto não é para fazer coisas, realizar eventos, nem cumprir planos pastorais, mas é para dar início a processos. Desde o princípio, procuramos olhar a vida e a vida pastoral como uma peregrinação e, por isso, há muito para ser e fazer. A meta não era de dez anos, nem de cinco nem de quatro ou o que fosse, mas é o tempo que Deus nos oferece. Digo que há muito a fazer neste caminho sinodal mais comprometido, de maior participação, comunhão, missão. Esta consciência, por exemplo, de que as paróquias são Diocese e é a Diocese que faz as paróquias. Não é uma soma de paróquias assim como o Presbitério não é uma soma de presbíteros e há que continuar a cimentar, a comunhão presbiterial e a comunhão eclesial. Há um novo paradigma que é o de sempre: todos, alguns, um, para se criar a circularidade e, na medida do possível, inverter a pirâmide que ainda existe, porque a grande maioria é servida por uma simples minoria. Mas temos de nos sentir todos como um povo santo de Deus e, aí, há muito para fazer. Não é a mudança de estruturas ou a mudança circunstancial que realiza a conversão. Neste muito a fazer está a conversão pessoal, a conversão pastoral, a conversão missionária e todos os desafios que Deus lançar à Diocese.
Aqui em Bragança, a presença de tantos jovens internacionais tem suscitado novos caminhos, novos modelos de encontro e novas linguagens. Dou o exemplo da plataforma “Jovens sem Sofá”, que são duas centenas de jovens e a maioria deles encontra-se todas as semanas. E começa a dar frutos abundantes entre nós.
Esta consciência eclesial mais profunda de que todos somos Igreja, de que todos não somos muitos para mostrar os mistérios de Cristo para ser sinal credível do Evangelho.
 
MB.: Assumiu esta diocese num momento social difícil, com uma crise financeira que origina sempre uma crise de valores. Qual acha que foi o maior desafio que enfrentou ao longo destes dez anos? A dívida da catedral, a criação das UP?
DJC.:
Antes de tudo, viver na fidelidade ao Evangelho da Esperança. Foram muitos os desafios. A realidade é desafiante, porque quando resolvemos um problema, aparece logo outro imprevisto. Costumava dizer, quando chegamos, que recebemos o pacote inteiro, as coisas positivas e as menos positivas e temos juntos, de encontrar o caminho para as enfrentar e ultrapassar. Muitas delas conseguimos ultrapassar, graças a Deus, outras estão em curso. São tantas as pessoas disponíveis, corajosas, inteligentes, capazes de levar por diante aquilo que é do bem comum, do bem geral e que cria a comunhão, que gera a unidade e que nos faz sentir alegres na esperança e ao mesmo tempo firmes e perseverantes na fidelidade ao Evangelho. Creio que o maior desafio para todos nós é a fidelidade ao Evangelho, é não fazer as coisas por fazer, mas fazê-las sempre com sentido. O cardeal Martini dizia:  «É mais fácil fazer as coisas difíceis». Sim, porque o nosso coração foi feito para coisas grandes, não nos podemos contentar com a mediocridade humana, profissional, social e espiritual. Foi mais fácil realizar o difícil, porque aí estivemos todos mais comprometidos.
Uma das mais belas ações foi a visita pastoral a toda a Diocese: durante quatro anos consecutivos peregrinei às 545 comunidades da nossa diocese, hoje em 18 Unidades Pastorais.  A Lectio Divina foi outra bela experiência de fé e acompanhamento espiritual com os adolescentes e os Jovens.
Um desafio grande foi, também, a passagem de 12 a 4 arciprestados. Talvez, até, no início, a medida mais difícil de ser tomada. Em relação às Unidades pastorais nem tanto porque o estudo já estava feito. Foi depois um ano de estudo mais aprofundado e, depois, a sua aplicação. Começámos com 40 e, neste momento, temos 18. Quer dizer que houve aqui um caminho de maior consciencialização de unidade presbiterial e de unidade eclesial nas comunidades. Mas ainda há um longo caminho a percorrer.
Recordo o slogan que, na altura nos propusemos, de “menos paróquias e mais Igreja”. Nas celebrações era o de “menos missas, melhor missa”. Estes caminhos estão a ser percorridos, mas continuam como desafios.
Na parte administrativa foi um trabalho alargado e que envolveu muitas pessoas. Havia dossiês muito difíceis que foram sendo resolvidos e alguns estão em fase de resolução e levam tempo.
O Cardeal Martini dizia também que são precisos 12 anos para se começarem a colher frutos de algumas coisas que se vão implementando. Só passaram dez, pelo que o que importa é semear. Na Igreja uns semeiam, outros cuidam do terreno e outros virão a acolher. Somos simples servidores do Evangelho.
Desde o início procuramos a atitude de humilde servidor do Evangelho da Esperança e de não fazer o trabalho sozinho, mas ser sempre um trabalho sinodal. Sinto-me feliz por isso, por ter ajudado a construir este crescendo de comunhão, de participação, de desafio para a missão.
 
MB.: Sente que da criação das Unidades Pastorais resultou uma mudança de facto em termos operacionais na diocese?
DJC.:
Já há caminho feito em muitas Unidades Pastorais, graças a Deus. As Unidades Pastorais são caminhos novos e a novidade custa sempre, mas acredito que aqueles que já assumiram vão consolidar o processo sinodal. A outros vai levar mais tempo. Não tínhamos outra alternativa senão a de consolidar os princípios e os valores do Concílio Vaticano II. Se houver outro caminho melhor, pois que se aplique. Ser Igreja é ser peregrino, constantemente em caminho, em comunidade, à procura dos horizontes que o Senhor indicar. Eu também nem sabia bem o que eram as Unidades Pastorais. Mas a partir da experiência de dioceses do norte de Itália, da Suíça, da França e aqui da Espanha, fizemos o estudo e o aprofundamento das linhas mestras e é nesse caminho pastoral que nos situamos.
E agora com este processo sinodal também está em curso a criação dos conselhos pastorais das Unidades Pastorais. Neste ano está no plano pastoral a avaliação das Unidades Pastorais, respeitando os caminhos de cada uma, as zonas geográficas, a especificidade cultural. Temos três tipologias, aquelas que estão confiadas a Párocos in solidum com uma equipa pastoral, as que estão confiadas a um Pároco com uma equipa pastoral e as que estão confiadas a vários Párocos, mas em que há uma unidade, por exemplo, na preparação do crisma ou da catequese. Algumas Unidades Pastorais, de facto, já têm essa visibilidade da comunhão da unidade, enquanto outras caminham nesse sentido. O Senhor nos ajude a todos nesta conversão pessoal, pastoral e missionária, sempre com muita humildade. Fazer o bem e fazê-lo bem feito custa sempre. O bem faz sempre bem e as coisas boas não morrem.

(Entrevista completa na versão impressa ou em PDF)

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