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A Sociedade XIV - Um funeral na aldeia

A morte é o final anunciado. Toda a honra que queiramos dar aos mortos, será pouca para recordar as suas vidas. Assim é nas aldeias. Por mal que possa parecer, ele há pessoas que suscitam mais saudade, ou agradecimento, ou outra coisa, por serem novos, ou fazerem mais falta material ou pelo que representaram, mais mundanamente.
De manhã morreu o Sr MB, muito considerado na terra, com muitas propriedades e amigo de todos. Abria a tulha a todos, nos anos maus. Matou muita fome!. Teve uma morte santa, não ficou para aí tolheito.
Morreu ao fim da manhã e, mesmo tendo uma casa grande era solteiro, o velório foi para a Igreja, esperava-se muita gente. Era dia de semana, todos estavam no campo e só quem estava por perto veio mais cedo. O velório costuma ser pelo fim do dia e pela noite dentro. Eu estava lá. E fui para a Igreja pelas 6 horas.
A Igreja, talhas abundantes, bem trabalhadas, muito antigas e imponentes. Na aldeia havia pouca gente, é recôndita, e só umas 8 ou 9 pessoas lá estavam entre as 6 e as 8 h. O altar, sobrelevado, os santos de ar sofrido ou ansioso, muitas setas cravadas. Tectos pintados e um púlpito de pedra encaixado na parede, com escadas a condizer. O padre não chegou ainda, são seis horas e só estão cinco mulheres de idade avançada, o irmão, um amigo próximo do falecido e mais um par de pessoas. Espera-se muita gente e está um frio de rachar, pois estamos em Fevereiro. A porta está encostada, mas o frio entra e gela, ainda mais, as paredes já frias.
Uma das idosas, que parece ser dominante, arranca com uma Ave Maria no frio glacial, logo seguida das demais e dos murmúrios abafados dos poucos presentes. Uns quinze minutos mais tarde termina a oração. O irmão do falecido, visivelmente abatido, mas resignado, com a resistência que a idade nos dá, procura activamente manter acesos os círios, que flutuam no azeite. Do exterior chega o cheiro a vacas.
Terminada a reza, com o frio a rodear os ombros, numa capela quase vazia, sente-se um vazio de som e de ocupação de espaço. É inevitável o despertar de uma conversa entre os homens presentes, mantendo um reverendo respeito, em tom baixo, mas totalmente audível numa Igreja pequena, quase deserta e fria: ”Ó Manuel já acabaste a azeitona?” ouvia-se baixinho. E os círios teimavam em apagar. “Ele não, lá para o fim da semana”. Mais uma tentativa de manter os círios acesos. Os fósforos e os apetrechos não colaboram, mas o falecido necessita de luz, é-lhe devida.
“Sabes se o Manuel da Santa já acabou a poda da vinha? Precisava dele para…” A programação do trabalho dura mais uma hora, em voz baixa, com os círios sem colaborar e, nisto,…recomeça a reza, um terço completo. O falecido, ali honrado e respeitado como poucos pelo seu merecimento, marca a sua presença austera, na simplicidade da urna e na memória das suas qualidades, só com a sua presença. Mais umas frases agrícolas e o tempo avança. Já todos chegaram do campo e cearam, os círios já colaboram, embora o frio se acentue com a noite. Chega o momento de encher a Igreja. Xailes pretos pela cabeça, véus, samarras e muito respeito. Chega o Padre, e iniciam-se as últimas rezas, antes da missa.
O funeral, como a agricultura, o sustento da vida do falecido, não pode esperar.

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