A opinião de ...

O Uso Consagrado da Língua

“Toda a verdade e todo o erro, se repetidos mil vezes, tendem a converter-se no seu contrário”.
Vergílio Ferreira.
 
Inspirado na frase sentenciosa do autor de “Manhã Submersa”, como mero escrevente e falante da língua de Camões, e não por reclamar uma autoridade que, nesta matéria, não me cabe, parece-me interessante fazer aqui o levantamento de algumas situações em que, no nosso quotidiano linguístico, a persistência no erro gramatical se converte em “norma”.
Ainda que a subversão das regras da gramática seja um fenómeno transversal, a que não escapa o politico, o jornalista, o advogado, o cidadão menos esclarecido, o mais letrado, etc., vou-me deter apenas em dois ou três exemplos que fazem parte do universo futebolístico, por entender que a linguagem que serve o desporto - rei oferece um vasto manancial de possibilidades de análise linguística: ele presta-se à melhor metáfora, à mais sugestiva das perífrases, ao mais intenso dos oximoros, etc.
Para começar, atentemos na seguinte construção frásica, repetida até à exaustão nos vários canais televisivos: “fulano tal meteu a bola fora”. Nada mais patético! Porque, a nível semântico, no que concerne à regência verbal, “meter” remete para a ideia de”introduzir”, “colocar dentro”. Uma enormidade que, num outro plano, se pode comparar, por exemplo, a “evacuar para dentro” – se “dentro” for o espaço ou o lugar de proveniência da coisa ou substância expelida. Pois, “deitar a bola fora” e “atirar a bola para a bancada...”, parecem estar completamente em desuso, fora – de -  jogo.
Uma outra incongruência gramatical muito frequente: “O jogador x é dos que mais corre nesta equipa”.
No caso, a oração relativa tem como sujeito o pronome “que”, relativo invariável, cujo antecedente é o pronome demonstrativo “os” (com o qual se contrai a preposição “de”). Segundo as regras da concordância, o verbo da oração relativa concorda (em número) com o antecedente de “que”, quando este é o sujeito da oração. Portanto, neste contexto, correcto será: o jogador x é dos que mais correm…
Li há dias na imprensa desportiva a seguinte concatenação de palavras: “Saiu a lista dos treinadores melhor pagos do mundo”.
Recordando o gramaticalmente estabelecido, quando o advérbio “bem” antecede o particípio passado do verbo (adjectivo verbal), o termo a utilizar é “mais bem”, que é o comparativo de superioridade de “bem”. Emprega-se “melhor”, sempre que este modifica o verbo em tempo simples: ele é melhor jogador que o colega.
No último jogo entre Sporting - Estoril, transmitido em directo na televisão, há um momento em que Diego Capel, jogador leonino, é derrubado na área adversária. O árbitro, sem hesitação, por se tratar de um lance indiscutível, deu indicação do castigo máximo. O relator observa: “Pénalti para o Sporting”.
Ora, se o jornalista em causa tivesse em atenção o verdadeiro significado da palavra “pénalti”( sinónimo de penalização, pena ou castigo aplicado a alguém que cometeu uma infracção), substituiria tal enunciado (completamente ambíguo ) pelo seu contrário, obedecendo, assim, a uma lógica semântico – discursiva: pénalti que favorece o Sporting, ou, noutra perspectiva, Pénalti contra o Estoril. Mas, incompreensivelmente, este erro prolifera dentro desta classe.
Outros exemplos seriam dignos de registo. Provavelmente, terão a sua oportunidade numa próxima ocasião. No pressuposto de que a “complexidade” da língua portuguesa, bem como o carácter “traiçoeiro” que lhe é atribuído, se devem, em muitos casos, às mais variadas impropriedades na sua utilização. Constrangimentos pelos quais o “uso consagrado da língua” se responsabiliza.
 

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