A opinião de ...

Cordeiros e lobos Anjos e demónios

As festividades da Páscoa evocam um mosaico variado e completo de situações, emoções, determinações e ações humanas tão milenares quanto atuais.
A “Pessach” significa, literalmente, “passagem”, festeja-se há mais de 3.500 anos e celebra a libertação do povo judeu, escravizado no Egito onde estava cativo do Faraó. Nos festejos que, desde então, todos os hebreus celebram, muitos deslocam-se a Jerusalém quando tal lhes é possível. Assim fez Jesus Cristo, há 2.000 anos. Nesse ano, fundador da nossa era, as situações e sentimentos originais multiplicaram-se e diversificaram-se. O primeiro gesto de relevo, depois da receção apoteótica que os cristãos recordam no Domingo de Ramos, foi a expulsão de tantos quantos usavam o espaço sacramentado do Templo para comercialização de animais e outras oferendas, com as respetivas taxas e taxinhas (como agora é moda dizer-se) com interesses e corrupção até ao mais alto nível da hierarquia religiosa. Provavelmente, esse terá sido o primeiro passo que levou Jesus ao Gólgota, depois da pré-condenação no Sinédrio. Até lá, porém, no espaço de uma semana, desnatou-se a sociedade de então (tão parecida, afinal com a atual), evidenciando atitudes, decisões e comportamentos extremos e antagónicos. Traição, coragem, cobardia, chantagem, generosidade, crueldade, bondade, pecado, redenção, verdade, mentira, heroísmo individual e manipulação de multidões, perdição e salvação, tudo emerge e floresce naquele tempo, naquele lugar. Mas é apenas a constatação e concentração do que pululava já, na sociedade de então e que, queira-se ou não, continua a povoar a humanidade.
Em todas as épocas, em todos os lugares.
Em visita recente ao nosso nordeste e no intervalo de poucos dias, no espaço de poucos quilómetros foi possível contactar com situações díspares e opostas, desde a memória da bondade de alguém que dedicou uma vida quase centenária dedicada ao próximo, procurando fazer bem e ajudar quem precisa e, pouco tempo depois, confrontar-se com a arrogância de quem se acha senhor do mundo, dono do interesse comum invocando-o, falsamente, para prejudicar quem entende, para auto-satisfação e prossecução de vinganças pessoais, mesquinhas e indignas.

A Páscoa hebraica celebra a libertação. A Páscoa católica, a fundação. Uma vem na sequência da outra, mas a segunda tem, adicionalmente, o complemento da complexidade do comportamento humano. Aos cordeiros da primeira, a segunda acrescentou os lobos. Ao anjo justiceiro do Antigo Testamento, o Novo juntou os perversos e maliciosos demónios.

Sem calendário fixo, baseando-se nos ciclos solar e lunar, celebra-se sempre pela primavera. Tempo de renovação. Deveria ser, igualmente, tempo de reflexão e de início de um novo período, mais colorido, mais frutuoso, renovador e redentor. Sem que, para isso seja necessário renegar o passado que a todos marca e enforma. Relembro, a propósito, uma anotação encontrada entre os vários papéis que herdei do meu tio, padre Joaquim Leite, falecido recentemente: “Tudo o que a árvore tem de verde, colorido, cheiroso e gostoso, vem-lhe das raízes”

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