A opinião de ...

Prendas de Natal…

O Sol vai baixo e os raios furam as nuvens frias e espessas que abundam, por esta altura, nesta banda, dá gosto observar, bem protegido por agasalhos convenientes, os vultos fantasmagóricos que costumam habitar estes céus. Os traços vermelho-fogo, à mistura com pinceladas de ardósia escura são majestáticos quadros colocados ao acaso nesta intemporal galeria. Daqui, duma das varandas, observo a mancha verde dos pinheiros mansos que caminham em direção ao mar estancando, sem vertigens, nas bordas da arriba-fóssil, postal ilustrado exportado pela Caparica para todos os amantes da natureza que a apreciam em estado bruto.
Quando o céu vai limpo e o azul se afoga nas ondas vigorosas de um Atlântico vestido à inverno, consigo vislumbrar os navios na linha do horizonte, indo e vindo de algures, onde o oceano, por golpe de mágica, se precipita no vácuo, desaparecendo na curvatura do planeta Terra, nossa casa.
Para aproveitar os raios de inverno, que nos aquece por dentro, no alpendre, coloquei cadeira, rodada e bem estofada, em sítio protegido dos ventos e da chuva por vidros oportuna e localmente colocados. É cantinho especial onde me refugio em alturas de melancolia, recetível aos estímulos exteriores que me perseguem da infância dos calções, de fisga num dos bolsos de trás. Na alma de uma oliveira e bem no centro, oriunda do Sendim da Ribeira, oferta do Sr. Arnaldo Possacos, saudoso sogro, coloquei o engodo, uma pista de circo do qual serei sempre espectador atento em alturas do recolhimento apetecível, acompanhado do livro para o qual nunca estive disponível.
Os artistas que por aqui passam, neste circo que me diverte e anima, costumam atuar aos pares, ainda não sei se mantêm relação conjugal se apenas profissional. Elas, diz-se assim, são pavonas, bem vestidas, de traje claro, lindas e elegantes, de colar ao pescoço, falam linguajar que não decifro, rodopiam ao redor do palco num bailado que inebria.
Eles, o povo trata-os desta maneira, desconfiados, vestem de preto com adereços amarelos, são mais guerreiros e trapezistas, detestam concorrência. Porque sei que estes amantes da natureza são seres de extrema liberdade, nunca me atrevi a denunciar a presença com medo do levantar da tenda. Espectador sem bilhete vou lendo Os Morgados da Casa Mourisca enquanto todo eu, inteiro, pareço em cena, entre a Herdade e a Casa Mourisca, cavalgando erradamente pelos verdes campos.
Hoje fui bafejado pela sorte, muita animação, um coro ensurdecedor de pajens acastanhados à mistura com bailarinos multicores obrigaram-me a suster a respiração tal o esplendor da boca de cena mas, de repente, apoteose, cai dos céus talvez o encenador, de smoking, irritado, gralhando, fim do espetáculo. Está mais que pago este comedouro, as rolas, os melros, os pardais, canários e periquitos e, de quando em onde, um corvo, são o pouco do tudo que me rejuvenesce quando por aqui me sento.
Com a sincronia imparável dos tempos, em andamento, sei convicto, genuinamente interiorizado, que é a cabeça de cada e não o dinheiro a melhor fábrica das Prendas de Natal…

Edição
3760

Assinaturas MDB