A opinião de ...

A Viral Parvoíce

Durante o período de confinamento, como aconteceu certamente com a maioria das pessoas, tive a oportunidade de pôr em dia muita da oferta cinematográfica que o quotidiano (normal) nos impede de consumir com a regularidade que desejaríamos.
Numa dessas incursões pelo universo da sétima arte, vi um filme muito interessante (não me recordo o título), produzido pela Netflix, numa deliciosa caricatura à dependência da sociedade às redes sociais. Uma paródia que faz dos likes o sal da vida, o substrato a partir do qual se alimentam os egos e concretizam os mais distintos desejos e ambições.
Nesta comédia, por exemplo, os candidatos ao ensino superior, ao primeiro emprego, o acesso ao crédito bancário, para a aquisição de habitação própria ou de viatura, o acesso a uma consulta hospitalar e/ou exame médico, o desconto na entrada num qualquer espectáculo, etc., obedecem não aos critérios ditos atendíveis, mas à quantidade de likes que os interessados/proponentes ostentam.
Ocorreu-me submeter este tema à escrita, depois de, movido pela curiosidade felina e pela sugestão de alguém, aceder, através do Youtube, ao famigerado fenómeno da “Vovó Viral”, um sucesso que, extravasando as fronteiras da portugalidade, conta com mais de 200 mil seguidores e “milhões” de visualizações.
Ainda que o pudor esteja longe de ser um traço distintivo da minha personalidade, ao ver alguns excertos de meia dúzia de vídeos – que assentam no diálogo entre avó e neto (algures numa aldeia transmontana), num registo de linguagem pouco comum neste grau de parentesco, que vai do “alho” ao “fosga-se” -, fiquei deveras estupefacto perante este Nada que parece Tudo para milhares de pessoas, por entender, na minha cândida inocência, que o carinho e a ternura por aqueles que nos são queridos se expressam com naturalidade, no seio familiar, sem exibicionismos.
Quando confrontado com este tipo de ”produto”, chego à conclusão que a sociedade tem os valores invertidos. Hoje em dia a popularidade é conseguida, regra geral, não tanto através dos bons exemplos, da genialidade, mas do escândalo, da parvoíce, da aberração, da futilidade, do ridículo e da patetice - expedientes com um “nicho de mercado” capaz de garantir, a quem promove este género de negócio, tanto o sustento económico como o honroso lugar na galeria dos famosos.
Mas que tipo de gente assina e aplaude a humilhação (é disso que se trata) duma senhora com a vetusta e respeitável idade de 95 anos?! Será que o facto de sermos genuínos, sem filtros, é o bastante para nos tornarmos merecedores de aplausos?! Ou serei eu a fazer o papel do soldado que, na parada militar, no meio de centenas de colegas, é o único que marcha ao contrário, mas convencido que os demais estão errados?!
Confesso que, por momentos, e porque na parada social todos marcham mais ou menos uniformemente, me ocorre a ideia de que a minha existência não passa de um perfeito anacronismo. Mas a recomendada lucidez, para meu conforto, mais não faz do que confirmar a consagração e o culto da anormalidade.
Mas não é por aqui que os males vêm ao mundo. Além do mais, ninguém é obrigado a ver o “Alerta CMTV”!

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