A opinião de ...

A perceção e a realidade

“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo.../
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer/
Porque eu sou do tamanho do que vejo/
E não, do tamanho da minha altura.../”
Este excerto do poema ‘Guardador de rebanhos’, de Alberto Caeiro (um dos heterónimos de Fernando Pessoa) ilustra aquilo que vivemos diariamente no choque entre aquilo que vemos e a realidade tal como ela é.
Numa sociedade cada vez acelerada, em que o que acontece se sobrepõe à reflexão do ‘como acontece’, toma-nos, cada vez mais, os sentidos.
Ou melhor, encolhe o mundo que vemos.
No mesmo poema, Alberto Caeiro falava da comparação entre o campo, de vistas desafogadas, que faz crescer o nosso horizonte, e a cidade, que nos emparcela entre prédios e limita a nossa visão do mundo que nos rodeia.
“Nas cidades a vida é mais pequena/
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro./
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,/
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,/
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,/
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.”
Ora, como qualquer agricultor da velha guarda sabe, a melhor forma de conduzir um animal é limitar-lhe as vistas, focando-o no seu caminho, retirando-se as distrações laterais (utilizando as célebres palas que se aplicavam na lateral dos olhos de cavalos e machos, por exemplo).
Ora, uma forma de manter as turbas ordenadas, é precisamente limitar o horizonte de visão do indivíduo. Seja criando fatores divisionistas entre os descontentes, de forma a que se concentrem em discutir entre si, esquecendo o motivo original do descontentamento com a autoridade (dividir para reinar), ou colocar tantas distrações diante dos seus olhos que acabem por servir de palas, limitando a visão.
Numa sociedade que vive vidrada nas redes sociais, aquilo que é partilhado nem sempre corresponde à realidade tal como ela é a cada momento. Seja porque há sempre quem se aproveite usando uma notícia ou fotografias antigas e fora de contexto, seja porque quando olhamos por uma janela não podemos tomar a parte do mundo que vemos por essa abertura pelo mundo no seu todo. Por isso é que, ao medirmos a nossa altura, não devemos tomar como medida a sombra que projetamos, pois até essa varia consoante a hora do dia. Se formos tomar como boa a altura que vemos na nossa sombra ao início ou ao final do dia, vamos ficar com a perceção de que somos muito mais altos do que na realidade somos. Já se medirmos pela hora de almoço, vamos desvalorizar-nos por pensarmos que, afinal, somos mais insignificantes do que na realidade também seremos.
Por isso, a forma como vemos o mundo depende sempre das lentes que usamos (ou filtros) para olhar para ele.
A nossa perceção nunca será mais do que isso, uma forma individual de olhar para uma mesma realidade. Daí que duas pessoas em posições opostas olhando para o número 6 pintado no chão possam ver realidades diferentes, pois para uma delas o 6 será um 9. É a forma como lidamos com essa diferença de perceção da realidade que nos vai distinguir. Se não nos colocarmos no lugar do outro podemos nunca perceber que as suas convicções, daquele ponto de vista, também estão certas. E só assim conseguiremos evoluir enquanto sociedade, se não nos fixarmos irredutivelmente à posição de cada um mas percebermos que um seis também pode ser um nove.

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3919

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