Política, Justiça e dignidade humana
Política é a definição das condições do Bem Comum, das formas de alcançá-lo e da liberdade de cada um na Sociedade e perante o Estado. Justiça é o juízo sobre o valor e o mérito das acções, institucionais, colectivas ou individuais, à luz dos valores, das normas e das regras estabelecidos nos documentos orientadores e normativos emanados da Política e da tradição.
A Justiça deriva do Direito que, historicamente, foi sendo construído e reconstruído ao longo do tempo de um regime político e da tradição. Este tempo já tem 50 anos no regime democrático e os políticos em concreto só estão no exercício da função orientadora e reguladora por tempo limitado. Por isso, mesmo que alterem as leis constitucionais, pouco as modificam e estas permanecem ao longo do tempo na forma de Constituição da República e de cada uma das suas alterações. Mesmo assim, a Justiça goza de uma autonomia relativa.
Esta autonomia relativa permite à Justiça ficar fora do controlo político. Esta autonomia – já escrevia o nosso Michel Crozier, Marcelo Caetano -, tem três níveis complicados.
O primeiro é a interpretação do quadro constitucional e a sua tradução em códigos e quadros normativos. É um nível onde ainda há algum diálogo com o domínio político.
No segundo e terceiro níveis, este diálogo já não existe e as interpretações e julgamentos ficam reservados aos profissionais da Justiça, isto é, restringidas às culturas e subculturas profissionais de cada tribunal e corporação. No caso português, parece haver duas grandes culturas – a dos procuradores do Ministério Público e a dos juízes dos tribunais comuns.
O segundo nível é o da interpretação dos actos praticados face aos códigos jurídicos. Já não é uma interpretação colectiva mas individual ou de júri (três magistrados) e tende a hiperbolizar os desvios e a dar por consumados como infracções e crimes os atos julgados em contravenção com as normas. E agrava esta hiperbolização permitindo a colocação na praça pública de investigações sobre pessoas por actos ainda não julgados. E o bom nome da pessoa fica enxovalhado para sempre na praça pública, mesmo que ela venha a ser inocentada no terceiro nível.
Quando o terceiro nível chega, muitas vezes anos e décadas depois, de pouco serve serem os suspeitos ilibados. Foram condenados e destruídos antes pela infração ao dever jurídico do segredo de justiça e ao preceito constitucional do direito ao bom nome (artº 26º da CRP) até trânsito em julgado de condenação efectiva fazendo tábua rasa do direito à protecção individual da identidade e da cidadania em nome do mero princípio administrativo do dever de transparência que só deve ser concedido aos intervenientes no processo com exceção dos casos em que o conceito difuso de interesse público torne útil a divulgação. As infracções no exercício de funções políticas e de gestão pública enquadram-se no conceito geral de atentados ao interesse público? Há quem diga que sim e quem diga que não. E, ao abrigo da indefinição, corre a devassa da vida de muitos inocentes.