A opinião de ...

Impactos da Pandemia

O impacto mais profundo da pandemia começa agora a mostrar-se, ao fim de quase dois anos de emergência sanitária, com algumas intermitências.
De facto, a pandemia não significou somente a irrupção de uma nova doença, com uma letalidade considerável, sobretudo nas gerações mais velhas e nas pessoas com imunodepressão, sem uma resposta terapêutica eficaz.
Produziu também uma interrupção no curso normal da vida da grande maioria da população, com as medidas de distanciamento físico, como os confinamentos forçados, as restrições da mobilidade, as limitações de visitas e convívios, o uso de máscara obrigatório, além da vacinação em massa e os testes frequentes e, para alguns efeitos, obrigatórios.
Confrontou as pessoas com o temor da finitude e da perda de familiares próximos, induzindo comportamentos de autorreclusão, securitários e de certa intolerância em relação a outros.
E, apesar, dos sinais positivos que os dados estatísticos demonstram, no que respeita à diminuição da letalidade e severidade da doença, nomeadamente por efeito da vacinação e da perda de virulência das sucessivas variantes do agente patogénico SARS-COV-2, aqueles comportamentos mantêm uma certa inércia entre alguns, ao mesmo tempo que, simetricamente, cresce a impaciência e até a revolta, em alguns setores, em relação às medidas de combate à pandemia restritivas da liberdade individual.
Essa irritação e ressentimento acabaram por desembocar no reforço da votação de partidos que propõem uma rotura com a ordem constitucional vigente, ameaçando mesmo, em alguns casos, a democracia e os direitos humanos universais, a coberto da denúncia genérica da corrupção sistémica e da alegada subsidiodependência das minorias.
Isto posto, os especialistas alertam agora para as perturbações da saúde mental que grassam entre uma percentagem significativa da população, ao mesmo tempo que a economia dá sinais preocupantes, com a inflação a aumentar - com manifestações notórias no preço dos combustíveis e da energia, mas também no custo da habitação e na previsível subida das taxas de juro -, e as moratórias dos créditos bancários a chegar ao fim, tudo isso a par da estagnação dos salários.
Paralelamente, na cena internacional, a competição entre as potências e os blocos regionais pelo controlo dos recursos e dos mercados começa a endurecer nas zonas de fronteira, ameaçando deflagrar em guerra.
Como se não bastasse, a emergência climática está longe de estar resolvida, como a seca que se manifesta atualmente parece dar a entender, pondo em xeque a sustentabilidade do nosso modo de vida.
Que resposta será possível dar aos acontecimentos nesta situação?
Desde logo, não há dúvida que a situação descrita configura uma crise estrutural, que se estende do plano social e económico ao plano existencial.
Assim, qualquer resposta que seja meramente conjuntural ou setorial estará condenada ao fracasso, uma vez que não logrará dar resposta a todos os fatores que conformam a situação de crise atual.
Neste momento, mais do que nunca, torna-se necessário colocar o ser humano como valor central, partindo das suas necessidades existenciais, que consistem em afastar a dor e o sofrimento e aproximar o prazer e a felicidade, para traçar desde aí o futuro coletivo.
Por isso, é imprescindível continuar a desenvolver a ciência e a justiça, tratando de que o progresso chegue a toda a gente, mediante a satisfação dos seus direitos fundamentais e a preservação do equilíbrio ambiental, sem o que não se trilhará um caminho evolutivo.
Por outro lado, não se pode ignorar que “sem fé interna, há temor; o temor produz sofrimento; o sofrimento produz violência, a violência produz destruição; por isso, a fé interna evita a destruição” (cfr. Silo. Obras Completas, Vol. I: Fala Silo. Ato Público, Madrid, 27 de setembro de 1981, www.silo.net).
A fé interna aumenta na medida em que se descobre e fortalece um sentido válido para a existência, que possa guiar as escolhas de cada um, como nos recorda o exemplo de Viktor Frankl, relatado no seu livro “O Homem em Busca de um Sentido”.
Isso exige meditação frequente sobre a direção e os objetivos da vida pessoal e coletiva, porque a direção sem objetivos tende a diluir-se e estes sem aquela acabam por levar ao desvio ou à conservação, perdendo-se o seu sentido original.
A superação da crise atual está ao alcance da humanidade, se a mesma aprender a resistir à violência que há em si e fora de si, como primeiro passo para se passar a tratar os outros como se quer ser tratado. É esse o desafio histórico que se nos coloca a todos neste cenário pós-pandemia que se avizinha.

Edição
3871

Assinaturas MDB