Do alto dos oitenta e tal anos A habitação
O Papa Francisco, no seu livro Terra, Casa e Trabalho, afirma que “Família e casa caminham juntas! Mas um teto, para que seja um lar, deve ter também uma dimensão comunitária: o bairro”. E mais adianta que “todos os bairros tenham estruturas adequadas […]”.
Desde os anos oitenta, pós-revolução “25 de Abril”, até pouco mais do ano 2000, vivi num bairro em que aos sábados, domingos, feriados, dias de folga e até de “baixa”, sem deixarem de ser aproveitadas também as horas da semana pós-laborais, funcionava “como música para os ouvidos” o barulho dos trabalhos de construção de casas, numa entreajuda que só pode explicar-se pela solidariedade que movimentava as vontades daqueles migrantes do país, onde sobressaiam o alentejano, o transmontano e o beirão.
Eram pessoas que já tinham experimentado a dureza da vida e a incompreensão de quem poderia tê-las ajudado.
Muitos vieram de mãos a abanar à procura dum espaço (ainda não urbanizado) onde pudessem implantar a casa dos seus sonhos, para organizarem a sua vida, criar os filhos, e, entre outros objetivos, conseguir um emprego com que pudessem comportar as despesas do dia-a-dia. Serviam-se em estaleiros que, a crédito, lhes proporcionavam todos os materiais necessários para uma construção de alvenaria por eles projetada com as condições condizentes com o seu agregado familiar.
Sentimentalmente presos a este retângulo “à beira mar plantado”, não decidiram, como outros, procurar o estrangeiro, ficando, deste modo, a dar a contribuição do seu trabalho ao país onde nasceram.
A princípio, considerado bairro ilegal, como outros nestas circunstâncias, foi crescendo, cumpria as suas obrigações fiscais, e fez com que os responsáveis camarários lhe proporcionassem a água e a eletricidade, conquanto, por muito tempo, os tenham obrigado a calcorrear as ruas (largas e bem desenhadas), com a lama que no inverno era pródiga, tal como nessas mesmas ruas, era pródigo o pó que se levantava delas; e que, muitas vezes, por força do vento, rodopiando à sua volta, se tornava incómodo e difícil suportar.
Como a política, por vezes, se sente obrigada a acudir a outros lados, só ao fim de muito tempo compreendeu que se tornava intolerante deixar ao desprezo tanto esforço e tanta resiliência de quem contribuiu e continuava a contribuir para o bem do concelho.
Dizia-se, e era verdade, que as casas iam sendo construídas “à multa”. Em alguns casos até, motivo de tribunal, o povo que “é quem mais ordena” conseguiu, pela sua constância, muita paciência e grande ansiedade, a devida atenção dos responsáveis, de modo a que o bairro fosse legalizado, as ruas asfaltadas, tal como os esgotos foram uma realidade.
De facto, viu-se bem aqui a força do povo que fez com que o pós-25 de Abril olhasse obrigatoriamente para esse povo.
Hoje clama-se por habitação condigna para todos. E todos têm razão. Mas o que se entende por habitação condigna, e como consegui-la para todos? Tal como a firme determinação dos que, recentemente libertos da ditadura e da humilhação, soube lutar para alcançar aqueles objetivos, outros poderão, com idêntica determinação, seguir-lhe o exemplo.
Eu não sou a favor das manifestações ruidosas nem das greves que impeçam o progresso do país. Sou a favor do diálogo, do bom senso e da solidariedade que conduz à entreajuda.
Da parte de quem pode disponibilizar um espaço loteado, legalizado e servido com as infraestruturas essenciais para que um bairro ali seja construído, não será, de todo, impossível. Facilitar materiais de construção parece-me, sem dúvida, razoável.
Então, qual o motivo duma espera que, creio, vai prolongar-se indefinidamente?