A opinião de ...

A cultura do espelho e o vazio do coração

Erguemos altares ao “eu” e chamamos liberdade ao que, afinal, nos aprisiona. A felicidade não nasce do espelho, mas do encontro — e só a humildade abre caminho a uma vida com sentido.
Vivemos numa época em que a verdade parece ter encolhido até caber no espaço estreito da subjectividade. O que eu penso, o que eu sinto, aquilo que desejo: eis o novo critério absoluto. O “eu” tornou-se medida de todas as coisas. Esta autorreferencialidade não é apenas um traço psicológico; é um fenómeno cultural profundo: uma sociedade inteira a girar em torno do espelho — e a confundir o reflexo com a realidade.
As consequências estão diante de nós. O egocentrismo gera agressividade, transforma a convivência em competição e alimenta a desconfiança. Quem vive fechado no próprio ego torna-se incapaz de escutar, porque só ouve o eco da sua voz. O orgulho cega e a soberba endurece. E sem abertura ao outro, a vida asfixia: sem amor, tudo resseca.
O Papa Francisco tem uma frase desconcertante: “quando a alguém aprende a acusar-se a si mesmo, torna-se misericordioso com os outros”. Reconhecer fragilidades não nos diminui. Antes, humaniza. Aliás, é o contrário da lógica dominante actual: assumir a própria miséria abre a porta à humildade — e a humildade é a condição da compaixão.
O autoconhecimento, neste contexto, não significa introspecção narcisista, mas um caminho de libertação: saber quem sou, aceitar os meus limites e trabalhar-me para me tornar capaz de ser lugar de encontros. Só quando saio de mim descubro a alegria. Só quando me dou encontro a felicidade. O amor — que é sempre dom e saída de si — é o que resta de verdadeiramente humano numa cultura que absolutizou o desejo e esqueceu a dádiva.
Por isso, a fé acrescenta aqui um horizonte maior. A espiritualidade cristã recorda-nos que amar é servir e que a medida da vida não está em acumular, mas em gastar-se. Quem ama deixa rastos de eternidade: presenças que aquecem, gestos que transformam e memórias que despertam saudade. A felicidade não é um troféu conquistado; é uma consequência natural de uma vida oferecida.
O gestor Tom Peters disse um dia: “se uma janela de oportunidade aparecer, não a deixes passar”. Também a conversão do coração é uma oportunidade. Cada instante pode ser o momento decisivo para recentrar a vida no essencial — antes que o egoísmo nos feche todas as janelas e nos deixe a olhar para dentro sem nada encontrar.
O desafio é urgente. Numa sociedade competitiva, desconfiada e marcada pela violência, precisamos de recuperar virtudes esquecidas como a humildade, a temperança e a capacidade de escuta. Pensar diferente não deveria ser uma ameaça, mas uma riqueza. Só quem escuta sem arrogância consegue integrar perspectivas diversas e construir um futuro comum.
E fica a pergunta, simples e radical: na vida dos outros, sou eu saudade ou apenas alívio? A resposta a esta pergunta determinará não apenas a memória que deixamos, mas também a qualidade da nossa própria vida.

Edição
4062

Assinaturas MDB