A opinião de ...

Uma história exemplar

Aconteceu, inesperadamente e sem aviso prévio. Aparece na imprensa, é relatada por gente importante e torna-se tema de conversa uma situação conhecida se não exatamente como esta, pelo menos muito parecida, absolutamente igual na fase embrionária. Que, de qualquer forma, pode muito bem ser absolutamente igual se, por acaso, no futuro for bafejada com sucesso igual ou parecido. Porque, nestas andanças, a distinção entre um teimoso obstinado e casmurro, e um genial visionário é uma linha muito ténue, quase invisível e, efémera, muitas vezes. Depende, muitas vezes mais do exterior, do tempo e até da oportunidade.
Por variadas vezes fui incentivado a procurar, por entre as “sobras” do financiamento estrutural, alguma verba para poder apoiar, pelo menos de forma transitória “até que tenha nova oportunidade” a vários investigadores que, apesar da sua enorme qualidade, por razões, nem sempre razoáveis, ficaram sem suporte financeiro para prosseguirem os seus trabalhos.
Em ciência, há uma regra, que sendo assumida é questionável e, reconhecidamente, tem sérias e várias exceções, algumas são evidentes, como as recentes vacinas vieram comprovar. É tido como certo que toda a investigação de qualidade obtém, mais tarde ou mais cedo, financiamento para a sua prossecução. E é verdade... exceto nos casos em que as teses versam temas com elevado risco e todas as outras (e nem sempre são poucas) que estão fora dos eixos definidores das prioridades de desenvolvimento, definidas pelos decisores políticos.
Ao saber a história das vacinas para a Covid, baseadas nos estudos, desenvolvimentos e descobertas de Katalin Karicó, da sua teimosia e persistência e dos sacrifícios por que passou para fazer prevalecer a sua tese, lembrei-me, imediatamente de um investigador que todos os seus pares qualificavam de genial mas que, por uma das razões apontadas atrás, viu os seus projetos rejeitados. Para continuar a investigar desistiu da bolsa mensal, dispensou tudo quanto considerava acessório e continuou a trabalhar arduamente, durante um ano inteiro, sem qualquer salário. Não sou capaz de prever qualquer sucesso estrondoso no futuro devido ao seu trabalho mas sei de alguns projetos científicos que muito beneficiaram com ele.
Karicó também viu o seu projeto de uma terapia baseada em mRNA recusado pelas entidades financiadoras. Temos de entender que não houve qualquer implicância com a investigadora. O que aconteceu foi que o júri de avaliação entendeu que a instabilidade do RNA era um sério óbice à obtenção dos resultados propostos. E com razão, porque só depois de resolvida essa fragilidade é que foi possível obter resultados sustentáveis (mesmo assim, a vacina da Pfizer tem de ser conservada a temperaturas da ordem dos -80º centígrados para impedir os efeitos adversos da instabilidade do RNA).
Os dinheiros públicos têm de ter regras claras, universais e transparentes de aplicação e devem, tanto quanto possível, ser usados independentemente das convicções pessoais dos decisores. Não me espantaria nada que, entre os membros do júri que chumbou os projetos de Kalin houvesse quem acreditasse piamente na validade da sua proposição. É por isso que é tão importante a decisão de entidades privadas, como é o caso da Fundação Champalimaud, de apostar em projetos desenvolvidos por investigadores de qualidade inquestionável, mas com temas dificilmente financiáveis por instituições públicas por causa do risco de sucesso associado.

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3817

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