A opinião de ...

Expropriados de si

No Expresso Curto desta segunda-feira, Raquel Moleiro assinala os 120 anos da morte de Eça de Queirós com esta citação da obra Crime do Padre Amaro: «Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sanguíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade». Esta citação não fez mais que projetar-me, de imediato, para o que lera, dias antes, num artigo do Valter Hugo Mãe, intitulado O Paulino Carvalho. Ali se sublinha a importância do conhecimento, do contacto e da familiaridade com os padres para não se dar azo a platitudes e ar a preconceitos. «Quando temos o padre por um amigo, como pessoa entre nossos pares, uma missa torna-se exposição deslumbrante da fé, porque não se faz da figura abstrata, cheia de mito, que vemos nos filmes e nos livros» escreve Hugo Mãe. Efetivamente, conhecer e ser próximo do padre redimensiona a predisposição para acolher o seu testemunho de fé. Não admira, por isso, que hoje se fale tanto de pastoral da proximidade. Queira Deus que esta redundância nos purifique da tentação de transformar a Igreja numa organização de eventos e entreténs, contagiada pela voracidade das estatísticas.
A nível historiográfico, podemos identificar as razões do anticlericalismo e, sobretudo, apreciar a sua intensificação oitocentista, que o Eça tão bem regista, porém, o que hoje importa, para os crentes na honestidade intelectual e para os fiéis em Cristo, é aceitar o desafio de questionar o burlesco do óbvio criado em torno da figura do padre. Nada como a experiência pessoal para desconstruir mitos. Por isso, deixaria aqui uma pequena palavra sobre o Cónego José Bernardo Machado Vicente, meu pároco.
Telefonei-lhe na tarde de sábado, 15 do corrente, manifestando-lhe disponibilidade em celebrar na minha terra no dia seguinte. Disse-me que nesse dia lhe fariam em Mós, à semelhança do que fora feito em Carviçais, uma homenagem pelos 50 anos de presença e serviço pastoral naquela comunidade. Não estranhei o facto de não saber, dada a situação sanitária em que nos encontramos e, sobretudo, porque o Pe. Vicente não aprecia foguetórios. A celebração? Como a de qualquer Domingo. Que beleza, a naturalidade! É ela o palco da proximidade. A homenagem? Para além da oração dos fiéis, repetidas vezes agradecida pelo Pe. Vicente, a entrega de uma lembrança, da parte da Junta de Freguesia, e de umas palavras de apreço pelo presidente Luís Lopes. Pedi, também, para dar uma palavrita e para lembrar, lá como aqui, uma expressão muito cara a D. António Montes: «o padre é um expropriado para a utilidade pública» (Pe. José Craveiro).
Um padre é um expropriado de si, antes de mais porque, como discípulo de Cristo, sabe que a cruz é sinónimo de vida perdida e, consequentemente, salva. É um expropriado de si, porque escolheu uma via de todo singular para o exercício da paternidade. É um expropriado de si, porque vive a tensão e a alegria de se fazer alimento no que diz, na forma como está e no modo como age.
Numa das pagelas que distribuiu, para assinalar a data, o meu pároco escreveu, com o seu próprio punho, «Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo», na outra mandou imprimir «Obrigado, Senhor, pelos alunos e professores que me deste, pelas paróquias que me confiaste, pelos colegas que encontrei, pelos bispos com quem colaborei». Bem-Haja, Pe. Vicente, pela sua generosidade, essa que eu experimentei na pele.

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