A opinião de ...

(IN) JUSTIÇA

Na avenida Abovian, a mais antiga de Erevan, capital da Arménia, junto ao elegante e luxuoso Hotel Alexander, ergue-se uma enorme vivenda, usando como material de construção a negra rocha magmática, tão típica e característica da região. Esta área constituía, no início do século passado, o bairro mais rico e elitista da cidade. Viviam aqui as famílias mais abastadas e esta casa, em concreto, pertencia a uma família de médicos, famosa e bem sucedida. Tal como outras foi perseguida, alguns dos seus membros presos e outros conseguiram escapar. Contudo o anátema lançado sobre eles foi de tal forma violento e atemorizador que todos os sobreviventes cortaram amarras, esconderam e apagaram, dos registos e até da memória, sobretudo dos mais novos, toda e qualquer ligação ao clã familiar. Renasceram, para poderem sobreviver.
O governo atual pretendia devolver o imóvel aos seus legítimos herdeiros, contudo não há qualquer possibilidade de os identificar, tal foi a eficácia com que o corte genealógico foi efetuado! A utilidade pública que hoje lhe está conferida poderia ser a mesma que os verdadeiros donos lhe podiam, eventualmente atribuir, mas não compete, em boa verdade, ao atual poder público decidir sobre isso. Contudo a justiça nada mais pode fazer porque no juízo atual falta a história pretérita, sem a qual, a verdade contemporânea ao julgamento, fica amputada e inexoravelmente distorcida.
Por mera coincidência, levei comigo, para amenizar as largas horas de viagem, o livro “Inquisição e Cristãos-Novos” de António José Saraiva, editado e prefaciado por Ernesto Rodrigues. Nele se descreve o processo “exemplar” de Manuel Fernandes de Vila Real, amigo de D. João IV e do padre António Vieira. Crítico dos processos usados pela Inquisição, caiu-lhe nas garras e foi por esta inquirido e julgado. Com base em duvidosas denúncias foi preso e acusado de ser “fautor e defensor de hereges e caluniador do Santo Ofício”. Condenáveis estas pretensas ações não eram contudo suficientes para o levar ao patíbulo e à fogueira. Era preciso provas de judaização. “Miraculosamente” apareceram testemunhos, de dentro da prisão, jurando terem-no visto a fazer jejuns judaicos. Uma vez acusado ao réu convinha confessar para se furtar à pena de morte, mesmo que assim garantisse outras, menos gravosas. Não sabendo do que se tratava (porque o seus julgadores nunca o confrontaram com elas), para se salvar tratou de, como disse António Vieira “confessar o que não fizera e acusar muitos para adivinhar poucos”. Mas, para sua má-sorte, assumindo tudo e mais alguma coisa, não lhe passou pela cabeça que as acusações que tinha de confirmar tinham “acontecido” no cárcere e já depois da sua prisão. Viu assim a pena de morte aproximar-se sem que nada do que dissesse ou confessasse a afastasse, antes pelo contrário, mais contribuía para a sua condição de culpado impenitente por continuar a esconder o que ele nem suspeitava poder ser acusado. Foi por isso condenado como confidente diminuto! Em desespero e percebendo que perante todas as admissões que fizera anteriormente só lhe restava o tempo de prisão, desatou a “confessar” jejuns tantos e em tantas ocasiões que somavam a fabulosa cifra de 434! Obviamente que os jejuns admitidos agora continham aqueles de que era acusado mas se deixou de ser «diminuto» por ter confessado, era «impenitente» por ter continuado a judaizar depois de preso e de ter jurado o seu arrependimento aos inquisidores. Foi condenado e executado.
Por maior espanto que nos possa causar tal processo, maior será o que nos invade ao saber que um erudito espanhol Julio Caro Baroja, comentando este processo concluiu que, perante tal rol, amplitude e número de provas contra Manuel Fernandes, não é nada estranho que tenha sido condenado («no ha de chocar»)!!!!
O problema é que o possível choque não tem que aparecer ali mas muito a montante. O primeiro e terrível choque vem com a forma como essa “enormidade de provas” chegou às mãos da Inquisição, sem que com isso não deixe de serem absolutamente condenáveis as consequências que delas resultaram.

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