A opinião de ...

E a voz dos que não tem voz?

O contributo pessoal não é despiciendo na construção de uma sociedade democrática fundada na promoção da justiça, do bem comum e da dignidade da pessoa, na vida pessoal e familiar e no mundo do trabalho, da educação, da cultura, enfim, nos diversos âmbitos do existir humano.
Atentos aos problemas da vida contemporânea portuguesa, também os cristãos e a Igreja, não relegando para um plano secundário, pelo contrário, a função eminentemente espiritual da proposta cristã, não podem deixar, contudo, de estarem comprometidos com as questões emergentes e outras pungentes da nossa vida social.
A busca de uma espiritualidade conformada a um bem-estar íntimo e intimista, sossegado, em ambiente zen, desligado do mundo, como se se tratasse de um assunto privado, sem as necessárias implicações históricas e sociais que ela tem, não se coaduna com a mensagem radical e inovadora do cristianismo.
Assim, a rarefação da presença e ação de muitas mulheres e muitos homens cristãos na vida pública, dos órgãos políticos e suas decisões, dos grandes areópagos modernos e da generalidade da imprensa, dos tribunais, das universidades e das escolas, das empresas e dos bancos, da literatura, da música, do cinema, do teatro, etc, é um sintoma preocupante na Igreja portuguesa.
Não que se queira desvalorizar o papel de outras pessoas que não são cristãs, mas tão só de afirmar que não se pode ser cristão e não estar comprometido com o desenvolvimento e evolução do país onde se vive, não estar comprometido com a justiça, com a verdade, com a igualdade e, aqui, especialmente, com os mais pobres.
A escolha preferencial pelos sem voz nem vez, pelos mais pobres, remonta ao próprio Jesus Cristo e claramente ressoa nos textos dos primórdios cristãos.
Como resume a 1.ª Carta de São João (1 Jo 4,20): «Se alguém disser: “Eu amo a Deus”, mas não amar o seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê».
Deste modo entendida, a condição cristã e eclesial é pensar que não há nada a fazer perante a compra da “ética” e da personalidade, a falta de democraticidade, a ausência de apresentação de contas e de avaliação, as teias de interesses instalados, as cunhas e os favorzinhos, os secretismos de decisões que nos afetam a todos em gabinetes bem decorados e em almoços bem regados?
É possível ficar indiferente à indignação com tantos que conseguem fugir à justiça, com excelentes advogados pagos pelos nossos impostos, e outros tantos corruptos, que prejudicam imenso a nossa vida social e que até foram e são eleitos?
O Cristianismo que recebe do Evangelho a sua vitalidade e que não se circunscreve a nenhum partido, tem, no entanto, de ser palavra e ação transformadoras, como fermento colocado na massa, introduzindo em todas as dimensões pessoais e sociais uma tensão de verdade, de justiça, de amor e fraternidade. É esse o seu sonho!
O nosso país, tal é a escuridão em que nos temos vindo a deixar mergulhar, está sedento de esperança e de luz, de determinação ética e compromisso, especialmente neste dealbar do fim desta pandemia também necessita que os cristãos e a Igreja também se empenhem e sejam uma ação e uma voz profética, enérgica e vigorosa, reconhecida e autorizada, para as apresentar e as ajudar a tornar realidade.
Como referiu Jürgen Moltmann, num dos mais belos e inabaláveis manifestos à esperança, «o Cristianismo é escatologia; é esperança, visão e orientação para diante, e é também, em si mesmo, abertura e transformação do presente».

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3828

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