A opinião de ...

O Iceberg II

No meu artigo “O iceberg”, que foi publicado neste mesmo jornal, em fins de 2016, informava que eu e a minha equipa acordáramos em voltar ao iceberg que tanto nos intrigou, mas que, por falta de preparação, pouco ou nada adiantámos sobre as suas caraterísticas, com particular dificuldade em compreender o que haveria por baixo desse monstro, pois que uma desmedida quantidade de imundície nos impediu de fazê-lo com as ferramentas que leváramos connosco.
Desta vez era uma missão tão especial que pretendíamos ser secreta. Porém, como em missões semelhantes, também neste caso houve fuga de informação, pelo que, antes de partirmos, fomos assediados com muitas sugestões e conselhos, alguns dos quais considerámos serem muito úteis para o trabalho que nos propuséramos realizar.
Um dos principais conselhos que nos deram foi o de termos muito cuidado com as observações e conclusões que acabaríamos por registar, além de que não seria oportuno divulgá-las sem serem devidamente escrutinadas. Por outro lado, alguém entendeu que deveríamos ser prudentes durante a pesquisa que, certamente iria ser carregada de muitas ciladas, facto que, a acontecer, poderia levar a conclusões precipitadas e, por isso mesmo, carregadas de imprecisões. E que não nos esquecêssemos do material mais apropriado, entre ele umas quatro bússolas para, no caso de sermos atacados, imediatamente encontrássemos a rota previamente traçada por onde pudéssemos pôr-nos a salvo. Outros utensílios que nos iriam facilitar a pesquisa seriam, para cada um dos elementos da equipa, uma lâmpada bem forte para, na escuridão, conseguir distinguir aquelas surpreendentes coisas que se escondem e protegem debaixo de tão enorme bisonte! E também cinco picaretas e quatro engaços para separar mais facilmente a imundice. Ah! Já me esquecia! Levar também uma botija de oxigénio perfumado!
De posse de todo o material que achámos por bem levar, lá partimos…
A missão que nos movia era extremamente ambiciosa, e ao mesmo tempo, tão perigosa, que fez com que, na leve palidez do rosto de cada um, se manifestasse a enorme ansiedade que nos ia na alma! Contudo, a viagem correu bem: não houve sobressaltos a assinalar, a não ser uma pequena manifestação noturna traduzida num piar longo e triste duma ave cujos olhos vimos brilhar na escuridão.
Chegados ao formidável bloco de gelo, logo nos pareceu mais tenebroso do que na primeira expedição; e, por isso, como que se apoderou de nós um medo tão intimidante que quase nos fez abortar a pesquisa! Mas, passados instantes, depressa a nossa vontade se renovou e reforçou. Todos, apetrechados com os necessários instrumentos, mergulhámos na escuridão daquele mar, escuridão que imediatamente foi vencida pela luz que irradiava das lâmpadas de cada um. Não foram os fatos que envergávamos, e todos iríamos ter a morte como destino, pois a água que nos envolvia adivinhava-se terrivelmente gelada.
Sem largarmos a botija do oxigénio, um de nós tentou abrir a camada de imundície por onde poderíamos ter acesso às profundezas do abismo. Mas, só com o esforço concertado de meia dúzia de nós, se conseguiu.
Então, no preciso momento em que nos preparávamos para atravessar essa passagem, imediatamente surgiu, à nossa frente, empunhando um enorme tridente, um gigante barbudo e mal-encarado, de olhos faiscantes, aterradores e ameaçadores, que, vociferando numa tonitruante voz, nos perguntou quem éramos e o que ali andávamos a urdir, ao mesmo tempo que saiu das profundezas um bafo tão pestilento, que nos obrigou a abrir a garrafa do oxigénio perfumado, facto que deu origem a uma reação com consequências opostas: o perfume que entrou no enorme nariz desse gigante, imediatamente o deixou prostrado; em nós, sem balbuciarmos sequer uma palavra, fez com que fizesse desaparecer aquele cheiro nauseabundo, que seguramente iria estontear-nos, ao mesmo tempo que, aproveitando este momento incapacitante do guardião da inacessível mixórdia, aproveitámos para nos pormos em fuga.
E assim acabou esta segunda missão, sem que tivéssemos conseguido atingir o objetivo que ali nos levara – conseguir saber quanta e que qualidade de imundície haveria escondida debaixo daquele iceberg!
Pode ser que uma equipa especializada o consiga. Pelo menos, a ponta ainda é visível.

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