A opinião de ...

“A globalização da superficialidade"

Interessa-me reter esta expressão e transcrever o que afirmou o padre jesuíta, espanhol, Adolfo Nicolás, falecido em 20 de maio de 2020, no Japão. Morreu ao serviço de uma causa: servir os homens e a humanidade. De todos os homens. Da Ásia, América e África. Da África, algo que pessoalmente me toca, como modestamente tenho referido em algumas narrativas no Mensageiro. Atentemos no que Nicolás afirmou:
“Quando alguém pode aceder a muita informação, de modo tão rápido e indolor; quando alguém pode expressar e publicar ao mundo reações imediatas, sem pensar, por blogs ou microblogs; quando a última coluna de opinião do The New York Times ou do El Pais, ou o mais novo vídeo viral, pode ser espalhado rapidamente para meio mundo, moldando perceções e sentimentos, então o trabalho laborioso e meticuloso do pensamento sério e crítico, geralmente fica em curto-circuito”.
É curioso: Nicolás, pedindo aos seus irmãos jesuítas para aprofundarem o pensamento, serem sérios na abordagem à espiritualidade e à vida pastoral, visando alcançar, cristãmente, o bem, estava igualmente a alertar-nos a todos, crentes e não crentes, para a volatilidade de uma outra crença: a crença no superficial, no epidérmico, no fugidio.
No mundo atual, o deus supremo é o consumo, o desejo de ter, a posse de tudo e de nada. Ao lembrar os continentes sofredores, ele quis exatamente colocar o dedo na ferida: a injustiça e a iniquidade como objetivo primordial a combater.
Nas andanças por África, tive de abordar grandes homens que amaram o Outro. Retive, entre outros, Wole Soyinka, Nobel de Literatura de 1986, que retrata a sua Nigéria contemporânea, tão atormentada. Também Mandela (Nobel da Paz, o maior líder da África), Desmond Tutu (Nobel da Paz) o arcebispo anglicano negro defensor dos direitos humanos em África, e Joseph K-Zerbo, escritor burquino, um afro-positivista. Todos ansiando construir um mundo de esperança. E outros homens e mulheres mereceriam referência. Mas devo mencionar, por dever de justiça, o músico e médico, Albert Schweitzer, que deixou tudo quanto usufruiria no seu país (então, império alemão), para viver no Gabão, entregando-se, desde 1912, a tratar os doentes na localidade de Lambarené e espalhar a palavra de Deus. Poetas e escritores souberam e sabem estar do lado dos que sofrem, do lado dos que, em muitas aldeias e vilas e cidades, não têm água potável nem eletricidade nem medicamentos… O último exemplo é a moçambicana Paulina Chiziane, prémio Camões, cuja obra urge ler, abordando os problemas da mulher moçambicana.
Voltando ao início: amar o supérfluo, tão comummente em nós, adultos, e até nas crianças, quando tantos sofrem à nossa volta, aqui ao lado, neste nosso País. O supérfluo, que nos mata lentamente. E que destrói o Planeta.
Como em Francisco, as palavras e a prática ecuménica de Adolfo Nicolás têm acuidade: aprofundar o discernimento, com imaginação e aproximação ao Outro – para, ao menos, minorar a superficialidade que nos vai sacrificando. ‘Ter’ e ‘ser’ – uma questão pertinente.
A propósito: as “negociações” de Glasgow sobre o Clima trazem-nos esperança? Ou manteremos a superficialidade que nos tem devastado?

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3859

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