A opinião de ...

Balofos e pafós

As cãs perdem vigor a favor do bosque da calvície (leiam o Elogio da Calvície de Sinésio de Sirene), maleitas acrescentadas por uma operação mal sucedida esmoreceu-me a fortaleza física de outrora, apesar do dano, o corpo vai granjeando reservas, o acto de pensar continua em permanente ebulição (exactamente) mudando do estado corpóreo para o estado imagético a possibilitar-me viver neste terrível tempo de exílio pandémico como se fosse a minha Pátria não localista, não chauvinista, não regionaleira, sim universalista assente na liberdade/livre de teias, mascarilhas e óculos de sentido único.
Por assim ser, e é, levo em atenção o calendário (esse extraordinário invento latino de medição do tempo o qual permitiu o desenvolvimento científico e técnico) sendo o relógio o seu instrumento vital.
Ora, o calendário enxuto de carnes estreladas, automóveis de luxo, visons e jóias de insulto aos pobres e pobres de saco e cajado, adverte-me para a proximidade do Entrudo. Escrevo Entrudo, não grafo Carnaval. Entrudo obriga-me a confrontar-me com a minha origem, as minhas imperfeições, o subir a escada (ora chamada ascensor social) que a Fortuna me prodigalizou através da Fundação Gulbenkian.
Não substituo o Entrudo pelo feérico de lantejoulas do Carnaval de Veneza de Casanova, menos ainda do crioulo acanelado quente da Baía de Jorge Amado, nem o grão fino do Copacabana Palace do Rio de Janeiro. Peço desculpa ao excelso poeta Manuel Bandeira do Carnaval todo ano, poema luminoso na sua pungente tristeza, por isso mesmo, prefiro o Entrudo Nordestino que no início da década de sessenta do século passado, passeava Balofos inchados e Pafós ostentando meias de vidro remendadas na loja da Husqvarna que existiu numa esquina da Rua Direita.
Não estando preso a atavismos de saudosismo escrófulo, sinto saudades do Entrudo telúrico na linha de Teixeira de Pascoaes, no Marânus, porque a pureza ingénua dos Balofos obrigava a sorrisos cúmplices de quem os contemplava. Obviamente, este Mundo findou (Laskett concebeu o estimulante livro o Mundo Que Nós Perdemos), foi substituído a nível nacional por um mimetismo deprimente expresso nas artistas brasileiras a desfilarem em bikini a tiritarem de frio pois o bonito dinheiro possui imensa força.
No ano em curso o Carnaval está suspenso em virtude da contagiosa praga, não faltam livros a abordarem o tema, as gargantuescas televisões ao exemplo do quotidiano vão carregar nas tintas da farândola do supérfulo em prejuízo do essencial. Nas televisões está próspera o fogo-fátuo da incultura envernizada a assomar-se ao postigo (palavra recuperada momentaneamente) do escapismo às responsabilidades que o Ministro Cabrita é máximo expoente a levar Marta Temido, Brandão Rodrigues ou o Sr. Ramos péssimo carcereiro das vacinas a roerem as unhas de inveja.
Trago a terreiro estas figuras pois não conseguem transmitir o movimento da simplicidade, porque pelo próprio facto de, de algum modo, nunca deixarem capa impante da glória (sic transit…) do esporádico poder, enquanto os balofos e pafós percebiam até à raiz dos cabelos a efemeridade do arremedo de figurantes. Agora impera o simulacro de uma ópera bufa. Tristes, os personagens do Entrudo bragançano desapareceram!

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3818

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