A opinião de ...

Rogar pragas a um cartunista só se for para fazer a apologia do riso e das suas virtudes

A banda desenhada e o “cartoon” consumiram-me horas à juventude a copiar os meus heróis preferidos, a “Mafalda” [de Quino], Spirou & Fantásio [Tome e Janry], Corto Maltese [Hugo Pratt], o “Lucky Luke” [de “Morris”] e, o “Astérix e Obelix” [de “Goscinny e Uderzo”]. Os “irredutíveis gauleses” e, “o cowboy mais rápido que a própria sombra”, tiveram, durante anos, tela no portão da minha garagem. Estes ícones da 7.ª arte ajudavam as visitas a identificar rapidamente o prédio onde moro, do conjunto de outros seis iguais. No Seminário Maior do Porto rabisquei ativamente uns imberbes bonecos, para as equipas de animação e cultura e, para um colega, que escrevia num jornal regional. Fascina-me o humor, a alegria, como motivadores da vida do crente. Tenho para mim que “o humor e o riso são prelúdio do homem redimido”.
Quando entrei no Seminário no final dos anos oitenta, início das férias de verão, o Bispo D. António José Rafael, convocou os seminaristas maiores, a estudar fora todo o ano, para instituir o “Seminário em férias”. Para lá da liturgia, da pastoral, pediu-nos para orientar “tertúlias temáticas”, de acordo com as nossas apetências. Vá-se lá saber porquê eu falei da importância, lúdica e formativa, da banda desenhada. E, que sabia eu… do que todos sabiam na altura, do que aprendera da RTP, com Vasco Granja, dos fascículos aos quadrinhos que lia, do que ouvia: “uma imagem vale por mil palavras” e, o “riso castiga os costumes” e, lá me desembrulhei.
Sem arte, sem humor, sem riso, a vida torna-se monótona, acética e fria. Perante um drama, numa situação complexa, na correção de um atropelo da vida quotidiana, nada melhor do que uma inteligente “anedota”, seja ela falada, escrita, ou desenhada. A caricatura pode ajudar a mudar a aspereza da calçada, quanto mais o íntimo de um azedo cristão. Se a dureza do coração é própria dos homens e, não das pedras, também a comicidade, como diz Bergson, não se encontra fora daquilo que é propriamente humano e, pode ajudar a suavizar um momento, ou situação concreta.
Rogar pragas a um bom cartunista só porque este reage a uma atitude dura, agressiva, inflexível, com ironia e bom humor, só se for para fazer a apologia do riso e das suas virtudes. Ao defender a liberdade de expressão, tanto o direito civil, como o penal, perante a crítica e, a sátira, dão à ofensa de honra uma proteção tendencialmente menos intensa. Karl Rahner defendia que o riso ajuda a reconhecer-nos como seres humanos e, é o ponto de partida para reconhecer Deus.
Umberto Eco no seu imaginário no “nome da rosa”, confronta o monge bibliotecário Jorge de Burgos, com Guilherme de Baskerville. Burgos concebe o riso como fonte de dúvida, que não deve ser livremente permitido como meio para afrontar a adversidade do dia-a-dia. Para Baskerville o riso é “próprio do homem”, sinal da racionalidade humana. Burgos condena o riso, impondo-se autoritativamente. Baskerville defende-o, qual mestre, como sinal de racionalidade. Perante estes argumentos, Santo Agostinho dizia que se deve acreditar mais nos que ensinam, do que naqueles que mandam. S. Paulo VI, na exortação apostólica “Evangelii Nuntiandi”, diz mais, o homem contemporâneo acredita nos mestres se são testemunhas.
Um cartoonista que retrata a realidade com beleza, objetividade serena, bom gosto, humor, verdade, é mestre e, quantas vezes, destemida testemunha. Impedí-lo de expressar a sua visão, só porque esta nos incomoda, não tem jeito, nem faz sentido.

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3817

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