A opinião de ...

Todos devemos ser os outros de vez em quando

Permitam que partilhe convosco esta ‘nova’ experiência – algo assética – de celebrar a solenidade de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos sem a comunhão (entenda-se, comum união), física e visível, da comunidade orante. Sabemos – e bem – de todas as restrições cívicas colocadas aos fiéis e à comunidade em geral para a celebração destas efemérides. Não importa tanto para este artigo (e nem me quero imiscuir em assuntos aos quais não devo nem posso opinar por falta de competências e de informação) reflectir sobre as razões ideológicas que as mais diversas agendas internacionais sabiamente orquestram na implementação de novas festividades ou sentidos laicistas que esvaziem o sentido cristão da vida e do sentir público.
A celebração de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos será sempre o melhor e maior tributo à memória: à justa memória da gratidão. Reconhecer solenemente o contributo dos nossos antepassados não é mais do que criar sólidos laços de pertença e redes interpessoais de partilha, de afecto e de gratidão.
“É impossível viver sem os outros” diz sapientemente o Cardeal José Tolentino Mendonça. A ausência daqueles que amamos e que partiram para a Casa do Pai continuará a doer-nos até ao fim. Esta dor gera sempre um vazio insubstituível. Entender-me-ão todos aqueles que já sofreram a dor da separação pela morte...! Sabemo-lo bem... da morte não se ri. O encontro com ela reaviva em nós sentimentos escondidos, onde o medo e a contrição interrogam-nos sobre o sentido da vida. Porém, e de forma tão paradoxal, este vazio, sob acção da Fé, gera conhecimento, gera sentido, gera esperança, pois na memória dos nossos antepassados encontramos tantas e tantas respostas às nossas inquietações e dúvidas. Quantas vezes não encontramos neles as respostas às nossas dúvidas? Quantas vezes eles não são para nós modelos no agir e no pensar? Quantas vezes não procuramos copiar e replicar os seus ensinamentos e as suas experiências nas vidas de cada um nós e nas pessoas que se cruzam nas nossas vidas? Sim, é verdade, somos herdeiros. Somos herdeiros e, por isso, perpetuamos as suas vidas nas nossas vidas. Está aqui um grandioso sinal da imortalidade: nunca desapareceremos enquanto houver memória e, mais importante, gratidão com memória.
Assim se compreende melhor as razões destas festividades. Aqui celebra a vida, a memória, os afetos e o amor. Este tempo novo de pandemia trouxe tanto afastamento e tanta dor. Já pensaram quantos pessoas ficaram impedidas de se despedir dos seus entes queridos na sua partida para a Casa do Pai? Já imaginaram a dor daquele que não se despede, daquele que não toca, não beija e não acaricia? Imaginem o que terá ficado por dizer um ao outro! Que dor tão grande e que muitos de nós a carregamos... Estas celebrações são, de facto, paliativas desta dor. É verdade – como alguns dizem – que poderemos ir ao cemitério ou rezar-lhes em qualquer outro dia. Mas será a mesma coisa? Não! Usemos o exemplo do nosso aniversário: os nossos amigos poderão felicitar-nos todos os 364 dias do ano, mas o felicitar-nos no nosso próprio aniversário ganha outro ‘elan’. O mesmo acontece nas festividades de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos: não é o dia, mas o simbolismo do dia.
Por isso, retomo o título desta humilde reflexão: todos devemos ser os outros de vez em quando, onde cada um é tratado como irmão, onde a memória é viva e é vida, onde aquele que ama reconhece que cada um é um dom dado, único, irrepetível, estimado e muito valioso. Se assim não for, os homens seguirão sempre o caminho profetizado por Denis Diderot (filósofo materialista e ateu) em “Adição aos Pensamentos Filosóficos”: “de começo prosternam-se, a seguir levantam-se, interrogam-se, disputam, tornam-se azedos, anatematizam-se, odeiam-se, degolam-se uns aos outros, e cumpre-se o voto fatal do misantropo”. Sem Deus seremos apenas nada; seremos pó e sombras; candeias apagadas; inertes à ventura prometida por Deus ao coração de cada homem.

Edição
3807

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