Manuel António Gouveia

A minha ferida muito má

Quando o médico me disse
– E outros médicos confirmaram –
Que eu tinha uma ferida muito má,
Estava bem longe de supor que o abatimento em que vivia
Resultava apenas dessa ferida que me atormentava,
Dia a dia.
Porém, tanta felicidade me envolveu
Que, numa operação bem-sucedida,
Me foi retirada essa má ferida.

Agora sinto-me bem
E só peço que a ninguém
Aconteça o mal que eu tive.


Ser político

Ser político
(Adaptado do original)

Eu não posso ser político.
Se eu fosse político, como poderia afirmar,
Aos microfones e perante as câmaras,
Por exemplo, assim:

“- Cidadãos! O meu Governo é o melhor de todos”,

Se, no meu país, deixar que haja crianças a morrer sem nome,
Velhinhos a sofrer a solidão e a fome,
Barracas a cair de velhas, buracos a crescer de velhos,
Lágrimas de revolta e o consentir
Como se pode assim mentir?


Poema no Dia da Mulher (2)

Mulher, repara! Fez-se noite, de repente!
E a noite, maldosamente,
Aproveitou para esconder o mal que te feriu no peito!
E porque a noite é de breu, não há forma – não há jeito
– Penso eu – de encontrar aquele mal que te fez chorar
E que – diabólico – em situação tão insólita,
Naquele momento,
Desapareceu com o vento!


Em casa do senhor Joaquim

É noite. São talvez vinte e uma horas.
Depois de lauto jantar e de uma enorme confusão,
Tal como, às vezes, acontece por lá,
O senhor Joaquim
Está sentado no sofá, despreocupado e sozinho,
A olhar a televisão.

Como não vê a telenovela, a mulher, resmungando,
Foi para outra sala vê-la.

A filha, a Manuela,
Que detesta aquele argumento e aquele guião,
Fechou-se no quarto dela
E ligou para ver o Festival da Canção.


A Distância

A distância acabou por ser
Gradual, sistemática, duramente perseguida,
Seguidamente alcançada, firmemente capturada,
Terrivelmente domada, severamente oprimida,
Excecionalmente explorada…
Para, triste, sentida e doente,
Manifestar o desejo de retomar
O descanso que lhe roubámos, paulatinamente!

Utilizámos, além da humana passada,
O autocarro, o comboio, o automóvel,
A bicicleta raiada, o dirigível, o teleférico
E o ronceiro elétrico.


Este mundo

Eu não aceito este mundo...
Não aceito este mundo
Que se autodestrói
E em vez de construir, só desconstrói;
Que, ao destruir-se,
Continua impunemente a distrair-se,
Embora consumido e ameaçado
Pelas armas que, dia a dia, inventa e cria.

Preso ao terror que dessas armas lhe vem,
(Ao qual é impossível fugir alguém),
Este mundo da ignomínia, da maldade,
Da luxúria, desamor e corrupção,
Assumiu que tem na mão muitos valores
Em que o primeiro é o deus dinheiro!


O velho mendigo

Era de noite, na quadra de Natal. Cambaleante e doente, caminhava um velho mendigo, suportando fortes rajadas que um impetuoso vento fazia levantar. Havia uma semana que não se descansava com a ventania e com o frio que chegavam dos lados da serra. À noite, então, esta situação transformava-se em tragédia.
Vinha da aldeia vizinha este velho mendigo. A distância não o assustava; mas, com aquele vento e aquele frio, as forças começavam a fraquejar.


Jesus nasceu em Belém

S. Lucas, no seu Evangelho, capítulo 2, versículos 1 a 7, conta-nos as circunstâncias em que Jesus nasceu.
Dando cumprimento a um “édito da parte do Imperador César Augusto para ser recenseada toda a terra”, José, acompanhado por Maria, sua esposa que se encontrava grávida, dirigiu-se para Belém, cidade da Judeia, por ser da casa e linhagem de David, à qual ele pertencia.


O senhor Venâncio e o amigo

Conheci o senhor Venâncio há vários anos. O senhor Venâncio era muito popular lá na terra. Grupo de amigos em que estivesse presente, proporcionava a todos um grande divertimento e uns momentos bem passados que faziam esquecer as vicissitudes da vida. E aquela gente bem o merecia. Subjugados por um trabalho de subsistência – uns a cuidar das suas propriedades e outros a ajudá-los em troca da jeira – pouco dispunham de uma vida melhor do que a ruralidade, na qual o precário se avantajava em toda a extensão do seu significado.


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