A opinião de ...

Jardineiros de Abril

Sento-me numa cadeira pacífica para escrever o texto. É Abril, a passarada esvoaça enlouquecida pelo quintal e a terra ainda se recorda, empapada, da chuva da noite anterior. Todo o horizonte são árvores e prédios, e escolhem-se as primeiras para erigir a imagem da crónica.

25 de Abril foi também uma noite de aguaceiros radicais caindo, como oferta divina, no solo árido e infértil da ditadura. Isto é, Abril foi uma possibilidade luminosa. A terra queimada lá aceitou, a contragosto, a semente do devir. A semente germinou, dolorosa, em meia dúzia de células verdes. E daí se fez Portugal, o novo, com muitos frutos maravilhosos: a saúde, a educação, a segurança social, a abertura ao exterior, o futuro.

Porém, o passar das décadas trouxe essa liberdade fresca até uma meia-idade complicada. Com 47 anos feitos por estes dias, pode dizer-se com ironia que a revolução pondera fazer-se à estrada numa motorizada topo de gama, e nunca mais voltar. Cresce uma ansiedade democrática da qual se alimentam as ervas daninhas obscuras da nossa democracia fresca. Não tem sido um caminho fácil: o final do século, rico e produtivo, conduziu a anos de grande seca e grande fome, como na primeira metade da década passada. Os espinhos da corrupção estão cravados firmemente no tronco espesso desta frondosa árvore. Mas nem por isso deixam de aqui cantar os pássaros e arquitetar os seus ninhos, de aqui virem namorar os jovens casais depois do fim das aulas, quando o sol enternece em tons róseos.

Alguns dirão que é preciso arrancar a árvore: aspergir herbicidas violentos nas suas raízes, de molde a que tudo se destrua. Dizem, aos berros, que está condenada a árvore à tortura dos tais espinhos. No entanto, a mão carinhosa de um jardineiro rapidamente livraria desses corpos estranhos as rugosidades do tronco. E mesmo os tais destruidores, que se excitam na agitação de químicos pestilentos, paradoxalmente vêm, durante a noite, escondidos, beber da frescura que à luz do sol, incoerentes, condenam e maldizem.

Alguns outros dirão que a liberdade é só o direito de se poder plantar a árvore. Quem quiser, planta; quem não quiser, não planta. Ignoram, infelizmente, o valor da sombra onde a brisa arrefece e consola os desgraçados sem nada para beber, onde velhas cansadas param um pouco para reganhar o fôlego, ou os ramos grossos onde pássaros planeiam os seus futuros voos.

O 25 de Abril faz 47 anos. O dia inicial foi uma noite de chuva. A possibilidade de uma raiz. Não podemos permitir que se faça desta semente edificada uma memória oca. É preciso lavrar com amor esta ideia de futuro, cumprir o imperativo moral de tornar real o sonho. Construir comunidade em torno deste altar sagrado, partilhar os frutos, passear os cães, alegrar os filhos. Que nenhum espinho possa ferir a seiva delicada do seu ventre produtivo. Sejamos jardineiros de Abril.

Edição
3830

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